A construção da masculinidade e do machismo no rap.
O hip-hop como movimento de contracultura, traz em seu próprio conceito de fenômeno essa sensação de embate. Contracultura. Pra além do…
O hip-hop como movimento de contracultura, traz em seu próprio conceito de fenômeno essa sensação de embate. Contracultura. Pra além do som da palavra, me soa quase que uma impacto, numa batida. Também acho que não é à toa que o beat, ou seja, a batida, seja alicerce de um dos modos de expressão vocal do hip-hop, o rap. Artística, gritante e agressiva. Todo e qualquer forma de um fenômeno ou do construto que vem como um ataque a própria existência de seres distintos (pobre, homem preto, mulher preta, marginalizadas, etc.), para que não seja dizimado, há três passos básicos desse combate: sobreviver, se defender e finalmente atacar. É uma batalha pra além do físico, mas também do físico. Não só ilustra os armamentos de uma luta, mas, sim, de uma guerra.
Armas, sangue, violência, pressão, morte, desespero. E homens (cis). São palavras que vem na rabiola para a formação de uma imagem primária — não única — do que constitui o que é “guerra”. Essa guerra se trata de uma tentativa hegemônica (branca, hétero, cis, rica) em que opressão as existências não-brancas-héteros-cis-ricas é cotidiana, constante e mortífera. Extintiva. A força se torna, desde o primeiro choro, algo necessário para a própria existência. Necessidade e cobrança de força. E quando se pensa em força, não necessariamente se pensa em homens, mas sim em masculinidade e, por consequência, em machismo, ou seja, na constituição desse “ser homem do rap”.
Essa forma necessariamente combatente, a lidar com a própria sobrevivência, num estado de alerta constante, onde as violências vem em todas as nuances da existência de um ser (social, psicológica, física, espiritual, cultural, etc.) são atingidas. Há a necessidade de aguentar, de criar crosta, de ser firme, de ser homem. Homem, num sentido comum necessário ser quebrado, de sexo masculino, forte, provedor, defensor, bronco, duro, inabalável, foda. Para ser sobreviver, há de ser forte; para ser forte, há de ser másculo; para ser másculo, há de ser machista.
Tudo isso dito num pensamento primevo, a estrutura faz com que as palavras, desde sua etimologia até seu símbolo social, andem com outras palavras carregadas em seu cocho de retalhos conceituais, como por exemplo: Quando proferido “Homem branco/Homem cis/Homem hétero” não contempla só a questão descritiva, mas uma carga social, em que tem um sentido de uma contraestereotipização, se assim podemos dizer, não sendo antônimo, mas sim subversivo. Homens cis-héteros-brancos são os que tem maior poder sobre a sociedade, todavia, no pensamento crítico, inaceitável, igualitário — basicamente de um viés de esquerda — ganha-se também a noção de uma performance escrota, desagradável e conservadora, tal qual faz completo sentido.
No rap, parece que engole-se implosão e se vomita explosão. Sempre foi um revide. As periferias, os guetos, o que sabe-se que constitui-se as margens da sociedade, do que o estado mata e aterroriza, da sobrevivência, mas não só o ataque concreto, mas também a opressão, tirando o poder de ter. A violência econômica, do mercado, do Estado. Tira o poder de poder, tirando o poder de potência. Tentando correr gritando pelas margens. O rap é um grito Ashanti com toda a força que pode ser, mas, obviamente, transpassa pelas nuances ruins constituintes desse fenômeno. “Se eu preciso ser durão, eu vou ser durão pra caralho”, “se eu não tinha antes, agora eu vou ter pra caralho”, “se eu não era visto, agora eu vou ser visto pra caralho”. A repressão é uma mola, quando se desprende da pressão, expande muito mais. A vida num contexto racista, europeizado, branco e epistemicida exige, e pra um preto, pobre que quer ser artista, griot contemporâneo, exige, exige cruelmente.
Esse modus de masculinidade que por gênese é machista, junto a histórica opressiva e violenta, é refletida invariavelmente e o rap é também — apesar de suas glórias — constituído por isso. O que pode ser chamado aqui de uma hipermasculinidade e machismo.
Há um certo caminho traçado até aqui pelo hip-hop e consequentemente o rap, em que há a importação do que acontecia nos bairros marginalizados dos Estados Unidos nos anos setenta, junto a cultura das gangues, depois na era Biggie e Tupac. A chegada no Brasil nas periferias, no decorrer desse tempo e desde o final dos anos 80, decorrer dos 90 e 2000, nascem, consolidam-se os Racionais MC’s que mudam o que significa o rap e o hip hop com interpretações, descrições, expressões do que era aquele Mundo e quem vive naquele mundo, descrevendo a violência, negligência estatal, racismo e afins, onde a resposta agressiva vem explosiva, afiada e destrutiva, ápice do contra-ataque da guerra, sem tempo pra não explodir, onde só quando Jesus chorava parecia ser espaço pra demonstrar a fragilidade e a lágrima. Depois, ao final dos anos 2000, explodem Emicida, Projota e Rashid, uma geração mais jovem com uma forma nova de demonstrar o rap, onde essa fragilidade tem um pouco mais de espaço, da angústia que dói. Me vem “Sozim” do Emicida na cabeça imediatamente. Nesse movimento contínuo, ao final dessa década que vivemos, de novo outra explosão, com muitos integrantes vistos, em que não só o tal eixo é visto, mas boa parte do Brasil. BK’ estrala o Rio de Janeiro, Djonga estrala Minas Gerais, Baco e Diomedes estralam o nordeste, Zudizilla estrala o sul. Hoje, não há como não saber que o rap existe e é força artística cultural. Nessa nova explosão vivida, em meio as letras que ainda continuam com o aprendizado histórico do rap, trazem todo o viés social, fogo, expressivo, violento, crítico, todavia, parece que agora é mais permitido demonstrar fragilidade e cantar sobre isso, sem ser necessariamente exceção. Baco é muito importante nesse quesito, em que colocou o assunto de depressão no rap brasileiro em voga. A depressão do homem preto, pobre, nordestino em voga. A depressão de boa parte do que se diz minoria. Sempre existiu, todavia, parece ser necessário rasgar as pálpebras do brasileiro pra que não ver seja impossível.
É impossível que, pós esse movimento, negar a potência dessas existências e que é expansiva até o talo. Com a sensação de potência, há de se vir a sensação de poder, tais quais são diferentes. Potência é revolucionária, poder é capitalista. Há quem beira o nada — no sentido material — e ganha capital não só social como também monetário, o poder invariavelmente existe. Poder e posse. Poder esse que não só da arte, cultura e análise sociológica é vindo, mas também da performance. A performance que elevou ao topo, a performance carregada como homem firme, vencedor, que trilhou os caminhos mais difíceis e chegou ao topo. Homens que aguentaram e revidaram e mataram quem ou que tentava matar.
Com essa performance, junto ao poder, consequentemente o machismo espalha.
Nota-se, nas letras e em certas vivências fora do contexto musical de rappers que há uma forma de instrumentalização da mesma. Traz consigo as constituintes desse machismo proeminente dessa hipermasculinidade, a objetificação, misoginia e posse, onde o poder escorre para a relação para com o ser mulher, aquilo que não representa o másculo, o masculino, o homem, esse que é símbolo de força numa ignorância do quão forte as mulheres são e tem potência de ser — salve Stefanie e Negra Li, visionárias e ícones desde os primeiros tempos. Salve Ebony, Bivolt, Monna Brutal, Souto MC, Brisa Flow subvertendo e dizendo esse modus operandi nunca foi verdadeiro — e, claro, nessa negação da mulher, de feminino, também se encontra a homofobia dentro do rap.
Nesse movimento de não poder ter e agora poder ter, sendo a possibilidade de ter um aspecto crucial de quem vem da margem, a mulher, tida como troféu ou como parte do valor, desse status, numa desumanização. Mulher sendo a louca, a causadora de conflitos, a quantia, a forma da mulher, representando um símbolo que objetifica num ponto crucial, em que a mulher é a história cantada pela boca do rapper, do artista, como parte desse caminho de ascensão. Quanto mais mulher, mais másculo e com uma desumanização, é sabido que o ser humano não sabe ter um certo tato em relação a tudo.
Veja bem, é uma exacerbação em consequência da estruturação da sociedade. Sociedade capitalista, explorada, escravocrata e europeizada. Eles têm muito da culpa, mas a responsabilidade tem de ser do rapper e do rap também. Há uma justificativa, de fato, mas essa justificativa dura até quando? Os tempos não cabem mais.
É necessário compreender que toda a arte, principalmente que vem da margem, do underground, da contracultura, é um discurso, um discurso de afetos e afetações. As palavras do rap salvam crianças — sem metáfora — mas se chegam as glórias, também chegam as falhas que, num sentido transformador, pode e deve ser corrigido. Na mesma forma de prova de existência do ser marginalizado, numa forma de gritar “sou humano demais” nas fragilidades, também nas violências, pois, de fato é uma violência ao que não foge dessa estética. Com as feridas que doem expostas de outra forma, como a questão da depressão e da tristeza, há uma leve mudança no discurso machista do rap onde nota-se uma forma — ainda que não satisfatória — em relação ao que o discurso do rap traz de uma forma mais consciente e compreensiva, entretanto, a erupção do movimento feminista e das próprias mulheres dentro da música em geral, principalmente da música de contracultura, não só no rap, mas também no trap e no funk.
O hip-hop tem como parte de sua estrutura a conscientização e, portanto, é de se discutir, compreender, inventar e revolucionar dentro do próprio movimento de revolução. É necessário tratar das feridas do próprio movimento, pois, com feridas tratadas, há mais harmonia, mais gente, mais humanos e, portanto, mais grito, mais força e não é contrário.
Isso sim é sobre força e não sobre aguentar.