A crueza requintada de Djonga.
Desde que comecei a me ligar mais nesses novos bastiões que apareceram e se consagraram no rap brasileiro, BK, Baco, niLL, Chinaski, entre…
Desde que comecei a me ligar mais nesses novos bastiões que apareceram e se consagraram no rap brasileiro, BK, Baco, niLL, Chinaski, entre outros vários, eu peguei Djonga pra ouvir e não me desceu a primeiro momento não, nem num segundo, nem num terceiro. Confesso que eu tenho um pouco de dificuldade em me acostumar a alguns gêneros musicais no geral e por ter noção disso eu preciso de mais de uma só ouvida num álbum, apesar de achar que todo álbum é ouvido pela primeira vez, de fato, lá pela terceira vez e, principalmente, álbuns de rap que tem uma pluralidade infindável de formas, jeitos, vozes e beats diferentes, isso porquê, costumeiramente, a próprio voz discursiva no rap, individualmente já é um estudo complexo que, aliás, muito — muito mesmo — mais detalhado, didático, informativo do que muito artigo científico destrinchado em universidades por discentes e docentes de ego inflado e complexo de superioridade escroto. Mas, enfim, isso é papo pra outro texto.
Curioso que a uns tempos atrás eu não conseguia digerir e hoje não tem um dia que eu não ouço ou cantarolo — se é que é possível cantarolar Djonga — diversas músicas dos dois álbuns. Agora a pouco estava andando no calçadão aqui da cidade enquanto voltava do banco ouvindo “Esquimó” do primeiro álbum dele e, acho que todo mundo gosta de música já sentiu aquele arrepio que vai tomando conta quando ouve uma música que toca profundamente no ser em demasia. Arrepio esse que vai tomando conta, começa nas têmporas, vai descendo pelos braços, barriga, pernas, como uma descarga mesmo. Pois é, foi o que eu senti. E daí fiquei com dúvida do porquê essa mudança tinha acontecido, o que tinha mudado de um tempo pro outro. Como uma comida que era forte e difícil de engolir, apesar de saber que era interessante, tinha se tornado uma das minhas refeições preferidas dos dias e aí, nessa analogia com comida, caiu como uma boa pluma uma palavra que contemplasse o sentimento, tal qual é: Cru. Ou crueza.
Gustavo Pereira Marques, vulgo, Djonga, o rapper de Belo Horizonte, hoje nacionalmente conhecido, principalmente depois do seu segundo álbum “O menino que queria ser Deus” que, na minha opinião, que além de um dos melhores álbuns da música brasileira em 2018, tem uma das capas de álbuns mais estupendas e impactantes do mesmo ano. Um homem preto de short e um tênis foda no pé, sentado no colo de uma mulher gorda e preta representando Deus, enquanto pisa num homem branco engravatado com um cenário e tipografia quase que infantis. Só essa capa já dá uma reflexão gigantesca.
No decorrer dessas ouvidas dos álbuns em ordem cronológica contrária, ou seja, primeiro ouvi “O menino que queria ser Deus” e só depois o primeiro álbum “Heresia”, eu fui percebendo algumas paradas que só fazem esse artista crescer ainda mais no viés artístico. Djonga canta e nessa cantoria muitas vezes traz um grito cantado usufruindo de uma potência na voz que me impressiona, ele transmite só no tom, sem sequer levar o discurso em análise agora, o sentimento necessário do povo preto. A raiva, a confusão, a situação, a tristeza, a negritude. Rasga a voz em muitas vezes. Isso já é válido como um trunfo brilhante no seu rap, mas seu discurso, junto as batidas, passam uma forma de dialogar — ou não, quando necessário — que soa como uma bravata extremamente didática em que consegue usar de forma primorosa da simplicidade nas palavras, na forma que conduz seu flow, usando as palavras mais simples que atingem um tipo de poesia que é muito complexo de atingir. Digo isso de dentro do contexto poético, escrevo e leio poesia a mais de uma década por agora e sei das impressões sobre poesia, sendo um gênero muitas vezes repulsivo, que há um risco fino entre ficar piegas, clichê ou bobo e complexo a nível que dificulta o entendimento das interpretações. Um bom exemplo, nesses paralelos das diferentes poesias, vide uma das maiores poesias escritas por um dos maiores — se não o maior — tal qual é a perfeita, sem exageros, “Tabacaria”, escrita por Fernando Pessoa, que apesar da sua métrica de palavras um tanto difíceis ou sua subjetividade imensa, fala sobre a simplicidade, a simplicidade do momento em que um homem olha o movimento perto de uma tabacaria em sua rua e reflete sobre aquele movimento. Djonga, em paralelo a isso, a meu ver tem um mesmo nível poético quando diz “Pra quem já bebeu água suja, hoje é praia e suquin’ de caju” na música “ESTOURO” com a participação da incrível Karol Conká.
(Aliás, um parênteses sobre o paralelo de poesia clássica com rap, a meu ver, deveria ser um tanto mais comum e constante, afinal, rap é ritmo e poesia, porém, fica claro que esse paralelo se torna difícil aos adoradores intelectuais de poesia que engolem o embranquecimento e elitização do que é poesia. Enquanto tem muito intelectual cego pra isso, o rap tá fazendo muito mais poesia que muita poesia consagrada por aí, principalmente nesse saudosismo nostálgico e conservador da arte.)
Djonga consegue fascinar no usufruto da simplicidade da palavra de forma crua, mas essa crueza é requintada e cheia de esmero, não só por estar num flow, num beat, no que contorna cantar o rap, mas na forma de entendimento, nas imagens que são criadas com facilidade no imaginário e também, pra quem sabe o que é ser preto, são facilmente criadas essas imagens de si próprio nas linhas, as vivências e os sentimentos. Isso tudo fica explicito e nunca escondido, talvez explicito seria uma ótima palavra pra tentar descrever Djonga. Explicito no sentido de que a própria imagem de ser de Djonga passa isso. Ainda vou escrever um texto que tá num baú da minha mente em que mostro o quão importante e foda é a imagética de Djonga, a estética e tudo mais. Isso tudo perpassa essa crueza requintada. Essa crueza folheada a ouro.
Nas músicas Djonga consegue perpassar por diversos espectros e facetas do próprio em que mostra toda essa gloriosa crueza, desde as afirmações eloquentes, como a auto intitulação de Deus, sobre o machismo e a imperfeição desse processo, inclusive em relacionamentos. Aliás, as poucas músicas que Djonga fala sobre relacionamentos, como “Verdades inventadas” e “Geminiano” me deslumbram do quão real e, repetitivamente usada a palavra, cru e ainda sim ser fascinante, impactante, expressivo e verdadeiro e isso é difícil pra caralho. Conseguir expressar sobre autoestima do homem negro com uma das frases que acho mais geniais como “Minha autoestima tem crescido tanto que hoje em dia eu chamo ela de dívida externa” na música “JUNHO DE 94" que por si só é também um retrato de tudo que o texto quer explicitar, tais quais, transpassam grito, aviso ou denúncia sobre a situação histórica sobre povo preto, mas também uma própria forma de grito de guerra, de levante desse mesmo povo preto. Até a forma que em várias de suas músicas tem repetições em que o sujeito da frase é único e o objeto da frase é outro, é um recurso muito fácil de ficar precário e amador, mas bem usado, se torna potência e substância, a meu ver Djonga consegue fazer essas rimas com primor e isso é gigante.
Aliás, acho que dois momentos do famigerado videoclipe de “A música da mãe” ilustra absolutamente tudo que foi falado nesse texto, sendo o primeiro, nos primeiros segundos de vídeo em que um moleque adolescente branco — branco até demais — loiro, do olho azul começa com um close em seu rosto enquanto canta a música até que de repente Djonga chega dando, literalmente, uma voadora no moleque, tirando ele de cena e o mesmo entrando em cena cantando a música. De novo, Djonga chega dando uma voadora num moleque branco. Pera, mais uma vez: Um homem preto descalço e de short branco curto, com correntes e anéis de ouro, chega dando uma voadora num moleque branco que cantava sua música. Sem hipérboles, é simplesmente genial.
Outro momento do mesmo clipe, é mostrar Djonga em todo seu garbo, com a descrição do parágrafo anterior, todavia, agora com um short azul e meias cor verde neon, sentado num trono e com uma coroa de rei no topo da cabeça.
Essas duas cenas representam de uma forma maravilhosamente agressiva pra além do discurso dito pela expressão vocal, muito, absolutamente muito. É forte pra caralho. E ilustra com proeza tudo que tenta refletir esse texto. Djonga é muita expressividade pra além do seu rap, que já é fenomenal. Djonga é expressão em seu ser. Djonga é grandiloquência em seu ser.
“Esse Djonga é foda.”
E eu concordo em gênero e grau quando ele diz que: “Talvez por isso que minha língua é uma bazuca.”