A ética-estética-política de Tasha & Tracie.
Lembro lá em 2019 que eu ouvi pela primeira vez as gêmeas do rap quando o EP “Rouff” que já nascera clássico foi lançado, entra as duas…
Lembro lá em 2019 que eu ouvi pela primeira vez as gêmeas do rap quando o EP “Rouff” que já nascera clássico foi lançado, entra as duas irmãs e Ashira, MC e beatmaker de máximo respeito e a sensação que eu tive ao ouvir a obra foi de que mesmo que eu estivesse conhecendo o som delas naquele momento eu provavelmente jamais iria esquecer e/ou confundir com o som de um outro alguém. As minas chegaram simplesmente com o pé na porta em como expressar uma autenticidade marcante dentro do rap. Em 2020, Tasha e Tracie lançam apenas singles e participações, mas, todos, literalmente, todos os trampos feitos mantém a autenticidade e identidade das MPIF (Mulher Preta Independente de Favela) e ultrapassam os milhões de streamings nas plataforma, principalmente com o single “TANG” com participação de Kyan e produzido por Mu540, lançando um clipe incrível de uma identidade visual incrível, como também o single “Salve” que além da qualidade musical e audiovisual, soube muito bem usufruir do marketing e das redes sociais (principalmente tiktok/reels) na criação de uma coreografia que acompanhava a música. Claro, pra além do crédito as irmãs, a CEIA Ent. selo que tem se mostrado de uma qualidade ímpar em comunicar o/as artistas do rap e da periferia como mídia. E tenho de dar destaque ao single “Agouro” que tem um dos refrãos que, em minha íntima opinião, tem uma poesia única:
[Refrão: Tracie]
Sua própria inveja te ofusca
Minha xota pisca quando você surta
Quebro seu agouro quando eu vou jogando a bunda
Vou quebrando, vou quebrando, vou quebrando, vou quebrando, vou quebrando
Em 2021, esse ano sabático e bizarro que nos acompanha no Brasil, Tasha e Tracie nos presenteia com outro EP, “Diretoria”, agora com sete faixas, a primeira sendo uma intro, em que, bom, não que houvesse alguma dúvida, mas, elas entregam com consistência tudo o que pode compor a atmosfera que as mesmas vivem e ajudam a criar. Letra, beat, visual, capa, harmonia, participações (Veigh, Febem, ONNiKA, Yunk Vino), produção (CESRV, Devasto, DJ MF, Pizzol, Mu540), cultura, empoderamento, negritude, enfim, quaisquer desses aspectos podem ser extremamente elogiados em suas especificidades e como parte do todo. Definitivamente e facilmente um dos melhores lançamentos do ano no hip hop.
Há de se concordar que as irmãs Tasha e Tracie são presenças marcantes na atualidade do hip-hop brasileiro, não a toa as duas vem sendo citadas como referências em diversas músicas espalhadas pelo rap nacional aí, desde Djonga até Drik Barbosa, e é justamente essa potência de presença que me atrai quase que num sentido magnético, pois, compreendo que essa atração advém de uma excelência em termos de expressão artística e como indivíduos também ou seja, novamente essa palavra: Autenticidade.
Tasha e Tracie lançam “Rouff” em 2019, porém, como produtoras de cultura dentro do hip-hop e pela margem, pela favela, estão nisso a muito mais tempo como vivência, desde 2014, através do movimento/blog “Expensive Shit” que as próprias denominam como “o corre pela autonomia financeira, intelectual e da autoestima do jovem negro favelado” em que aqui começam o montante do ético-estético-político que é trazido no título do texto.
A idealização do próprio Expensive Shit já introduz e denota a compreensão e visão de mundo que as irmãs tem que trazem pro olhar da moda e da estética na expressão de corpos pretos e favelados, possibilitando não só economicamente como também em beleza, ou seja, compreendendo o meio pra transformar esse meio sem ceder a qualquer sentido subalterno da indústria, das marcas, num discurso pra além da palavra, conseguem produzir cultura e possibilitar cultura, então, estamos falando aqui não só dum sentido estético, mas, sim, também ético e claro, político, já atendendo assim o paradigma aqui proposto, entretanto, quando chegam ao rap e na trajetória traçada, exacerbam isso expressando numa totalidade gritante, pois, unem sua ética-estética (que já é política por si só) ao movimento artístico-político-cultural que é o rap. Hip-hop sempre foram, o rap vem como expansividade dessa expressão das irmãs, afinal, como Tasha diz na faixa “Cachorraz Kmikze”: “Nóis escrevia um rap ou virava mulher bomba”
“É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas. O limiar decisivo de constituição desse novo paradigma estético reside na aptidão desses processos de criação para autoafirmar como fonte existencial, como máquina autopoiética”, GUATTARI, 1992
Trago o paradigma ético-estético-político como viés de observação porquê, em minha leitura, Tasha e Tracie são duas artistas que exemplificam muito bem como a arte pode ser expressa com maestria ao atingir essas três proposições alicerçantes da produção de arte, arte essa que como objeto contemplativo é formidável, mas, também, como impulsionadora de potência de construção de subjetividade e sujeito também.
O paradigma ético-estético-político é imensamente mais complexo do que direi aqui, todavia, numa tentativa brutal de resumir, é basicamente um modus de enxergar a produção de qualquer coisa que tenha potência de criar subjetividade, seja arte ou ciência, portanto, trazendo a ética, a estética e a política como pontos de interesse da criação dessa arte, como algo que precede a gênese da arte, como uma “pré-arte” não necessariamente conscientizada, mas, fazendo parte da própria gênese da arte. O hip-hop e o rap como um todo, por nascer já como um movimento revolucionário, a meu ver, se equilibra perfeitamente na proposta do paradigma, entretanto, claro, para algo que se torna produto na sociedade capitalista, hora ou outra há de se intoxicar com o produtivismo, repetição e saturação, o rap também não foge disso mas isso é papo pra outro texto. O que eu quero indicar aqui é que Tasha e Tracie fazendo parte do rap e do movimento hip-hop, a arte de ambas já nasce com esse viés, digamos, mais “direcionado”, porém, em nível de individualidade e especificidade, basicamente, elas tomam isso tudo e elevam a um ápice.
O rap tem em seu cerne a intenção de afetar, principalmente pessoas pretas, seja em questões narrativas ou em impulsionar, despertar, expressar, emoções, potencializar corpos pretos, possibilitar revolucionar e definitivamente Tasha e Tracie trazem isso também, mas, afunilo ainda mais: Fico pensando em como deve se sentir e o que deve gerar na autoestima, especificamente, das mulheres pretas. A meu ver é de uma potência grandiloquente não só o discurso posto no rap das irmãs, mas, toda a performance no mundo como um todo, de tudo isso destrinchado no texto.
É desse bagulho que tô falando, sacou?
As irmãs passam pelo rap, pelo grime, pelo drill, pelo trap e sempre pelo funk, trazendo sempre discurso que atravessam a crítica, a putaria e a autonomia, um empoderamento (pra além da palavra esvaziada pela internet) em que são cruas, diretas e potentes, com flows inconfundíveis e frases que parecem balas, as famigeradas punchlines são mato nas composições das duas que exalam liberdade criativa. Há uma percepção de confluência de tudo que ambas produzem, desde a moda da Expensive Shit, da autoafirmação da MPIF até o discurso diretivo que o rap possibilita, todos esses caminhos de expressão artístico-político-cultural-revolucionária fazem parte do todo de Tasha e Tracie e isso é originalidade e, de novo, autenticidade.
Referências:
RIBEIRO, Vladimir Moreira Lima. O paradigma estético de Félix Guattari. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa — BA, v.19, n.1, p.1–24, fevereiro, 2019