Amiri, “Um dia de injúria” e a fúria negra que nunca morreu e nem vai.
Tá, eu vou ser real e dizer que eu não conhecia quase nada do rapper paulistano Amiri, tinha ouvido ele em “Sinfonia da Revolução” e na…
Tá, eu vou ser real e dizer que eu não conhecia quase nada do rapper paulistano Amiri, tinha ouvido ele em “Sinfonia da Revolução” e na incrível “Mandume” e, pô, são duas músicas intensas, de discursos fortes e fodas, de todos que lá estavam. Ok, beleza. Mas aí, então, me vem uma música nova. Na verdade, duas músicas de uma só vez, com os nomes de “Um dia de injúria” e “Pantera Preta” e foi quando eu cliquei pra ver o vídeo que, na primeira frase da primeira música — tal qual será o foco do discorrer desse texto — no primeiro segundo, Amiri diz que quer me contar uma história e é o que ele faz de uma maneira que é forte e furiosa o bastante pra conseguir transpassar uma história contada e sim conseguir transmutar, em um resumo cirúrgico, em História.
O ritmo da música é leve, não pesa a primeiro momento, a voz de Amiri cantando é branda também e, nesse tom, ele apresenta Rakim que é um moleque tranquilo mas cheio de complexos tinha lá suas inseguranças, era tímido também, queria ser mais alto pra ver se ajudava na autoestima, usava camisa de rap ou camisa do Corinthians, na escola era zoado porque era pobre e preto. As escolas têm um histórico — inclusive corroboro pessoalmente com a frase — de ser extremamente tortuoso pra gente preta existir. Queria ser bonito, queria que ligassem pro que ele sente pela Bruna, mas, ninguém ali fala de aura.
Eu nunca comprei uma treta tão bem, porquê a história contada era também parte da minha história, história de muito moleque preto ou menina preta que correu pelo tempo e se mantém. Rakim sou eu e mais um monte. E ele lembrou de tudo isso hoje ao entrar no banheiro da faculdade e ver o que tava escrito.
Ele me dá uma frase longa, sem vírgulas, o ar vai acabando e um sentimento de suspense surge nesse pequeníssimo espaço de tempo que há entre a frase e o início do refrão que vem em seguida, quebrando levemente a tensão com a volta de uma voz branda, ainda que o discurso seja, de novo, cirúrgico e cuspido.
“Você quer o mundo pra você, enquanto eu quero algo pra mim, algo que foi roubado por você, algo que vá mudar o fim, você quer o mundo pra você e não importa o quanto custe ou quantas vidas custem ou o que sinta como ser, ai, ai, ai.”
Pois é: Ai, ai, ai…
A universidade é usado de uma forma tão certeira que me contempla o pensamento de forma crucial. A universidade pública é um dos antros mais brancos que já me deparei em minha vida e uso termo branco no sentido mais expansivo da palavra, em que permeia, de fato, um lugar de estranhamento pra um preto que lá frequenta, com pouquíssimas referências ou identificações, falo isso por experiência própria. A raridade de um olhar que não seja pra uma pele branca é assustadora e ainda mais assustadora quando os funcionários com empregos de menor salário, ou seja, limpeza, cozinha, são pretos. É um sentimento extremamente difícil de explicar, você ser um moleque preto, entrar dentro da instituição universidade pública, aclamada pelos meus pais, ex-professores, parentes, colegas, amigos, como suprassumo da intelectualidade, cultura, conhecimento da ciência e se lembrar da Casa Grande.
Falando de quem vive de dentro do contexto universitário como discente a alguns anos, é seguro dizer que a universidade, hoje em dia, é um dos contextos mais nocivos e doentes perante a situação da educação brasileira. A saúde mental lá dentro é exceção, tão exceção que eu sequer lembro a última vez que eu perguntei a alguém que também está nesse mesmo contexto e não estivesse sendo trucidado em algum aspecto de esgotamento social, relacional, intelectual, mental ou até mesmo espiritual. Um contexto que puramente reflete o que se tem, principalmente nesses últimos tempos nefastos, fora das paredes universitárias. Um ambiente em que a disputa de ego entre professores tentando o fetiche intelectual nojento travestido de discurso científico, microculturas de cursos que são só vestimentas pra dizer que pobre é menos que rico — alô, estudantes de direito e de medicina — disputa completa de poder, machismo, racismo, xenofobia, homofobia, estupros ou mesmo a barbárie que podem ser os trotes, o total escapismo constante e bizarro em drogas, o índice de depressão, ansiedade em universitários ser altíssimo. É de se enojar quando a mínima reflexão é feita para se pensar o que acontece nas universidades e quanto ela tem um poder status que denota um tipo de permissão.
Um cara preto que, desde que nasceu já vem com cicatrizes que sequer entende o porquê de aquilo ser dele. De terem feito engolir a seco e engasgar e tossir e vomitar. Dizem que é por causa da cor, mas que é que minha cor te fez? Por que é que meus antepassados sofreram tanto assim? E meu pai ou minha mãe, que são pretos? Também sofreram assim? E eu? Por que que tão me chamando de preto? Eu sou preto. Preto é ruim? Macaco? Bolacha Nikitos? Mas é por que eu sou preto? É só por isso? É por isso que isso tudo acontece? É por isso que meu sofrimento é tão diferente do seu, por que você, branco, que me fez sofrer assim? Dói, dói pra caralho. Eu tenho raiva e dor, não tem como não ter. Me fizeram feio, me fizeram menos, me fizeram triste, me esquartejaram, me mataram, me bateram, me submeteram. Eu tenho raiva. Eu tenho que ter raiva, eu tenho que ter ódio. Eu tenho. Me deram isso, é uma reação natural. Nasce da dor da falta de senso de vocês, brancos, e já faz tempo demais. Há de ser selvagem, bruto, agressivo, intenso e visceral. É natural, é o mínimo.
Enlouquecidamente contradizendo Racionais MCS em “Capítulo 4, versículo 3”: A fúria negra não ressuscitou porquê não morreu, a fúria negra não tem tempo pra morrer.
De novo, a fúria negra nunca morreu.
A música muda. Não é Amiri contando a história mais, ele transporta para dentro da história, no sentimento que é grosseiramente explicito e tem de ser. Se antes era uma história contada sobre a pele preta, agora é a pele preta contando história. O crescendo da música vem de mãos dadas com toda a fúria compreensível, necessária e eloquente.
A porta é chutada, o tom agora é outro, tem catarse e tem raiva, é grito, é rasgado e não só isso, é taxativo, “Ah! Eu vou matar um hoje!” pois, é tão expressamente dito numa onomatopeia “Ah!” antes da frase propriamente dita que é um desate no nó na garganta tão grande que dá pra sentir no canto de Amiri. Mas é pouco, a dívida é gigante, “Pensando bem, eu vou matar um monte!”, afinal “Vocês vão pro céu, né? Poder morar. Gente, que cara é essa? Vamos comemorar”.
É fascinante como o discurso contido na música consegue ilustrar tão a fundo o sentimento de um preto vivendo num mundo totalmente delirante e cruel infectado pelo racismo, mas, ao mesmo tempo consegue desenhar em detalhes a entidade nociva que é trazida sobre a alcunha de “Família tradicional brasileira” ou “Classe média” ou o que é dito como “Pessoa de bem”, em que agora não mais de fora da situação, mas na situação em si. É feito, brilhantemente, um diálogo necessariamente unilateral entre o personagem e uma sala de aula, em que no decorrer da música em meio a fala do personagem é interrompido — e é, a meu ver, simbólico também — com tentativa de frases e convencimentos que são um clichê raso, tentando acessar uma empatia e afeto que só escancara a culpa e o medo.
“Nossa equidade vive em leito, cê vive em prédio. Apartamento caro, a carta vem com o carro e facul paga, custo de vida alto, eu nem tive médio” e então, a primeira interrupção é feita “- Mas, as cotas…” numa voz amedrontada tremida com a superfície de um argumentozinho de merda que é destruído num grito com simplicidade e foco: “Ô, burro! Isso é direito, não privilégio”. Como antes dito, Amiri é cirúrgico.
Outra tentativa de interrupção é feita, “- Cara, pensa em Deus, lembra da bíblia, tanto que o salmo… O salmo diz-…”, dando mais traços comuns ainda dos títulos já citados alguns parágrafos acima. Religião, principalmente o cristianismo, que já se tornou um completo delírio e perde o papel de puracrença — isso se não ter sido desde sempre — tentando usar da imagem de Deus, o Deus cristão, em que o filho desse mesmo foi pintado de branco pra não parecer com a gente. Não fode e “Cala a boca enquanto eu tô calmo! É hoje que eu ateio fogo em vocês” e completando com uma referência a Racionais, “Sou sofredor, odeio todos vocês”.
Como eu disse, desde de Racionais até aqui o sentimento é existente e constante. A fúria negra nunca morreu.
“E de crimes, vão ter que por meu nome no topo da lista que eu sou fogo na pista e no logo nazista, nesse jogo classista, desse povo racista” num resumo da profundidade do sentimento do contexto e, também, do país vivido que é completado com outra onomatopeia “Aaah!!!” ainda mais catártico, ainda mais libertador, agora um grito, um completo soltar de voz que não contém nenhuma palavra escrita mas contém, literalmente, milhares de expressões e almas pretas nesse decorrer crônico desde o nascimento dessa nação que tem o solo banhado a tanto sangue pretx que chega a escorrer pelas bordas. “E que a globo me assista”.
Rakim é pra ser assistido. “Aí! Chama a imprensa que eu vou me ver, entrar atirando, entrar tirando os pseudo Hitler”. Apesar de querer ser visto fazendo aquilo tudo quase que como um ato que é cegamente abastado pela raiva mas num sentimento heroico, Amiri, que ainda canta a música no papel de Rakim, não mostra só o personagem, mas mostra também aquilo que o personagem combate; consegue fotografar com o lírico uma composição que cabe ambas as visões na música, concretamente transformando esse personagem vilanesco difuso e variado em uma imagem incisivamente histórica e concreta, aquele que se é tido como símbolo de todo mal, Hitler. Não só a persona Hitler, mas toda a ideologia cruel, esquizofrênica e odiosa que havia por trás da ideia de Hitler. Pois é, eu não sei bem o que aconteceu, é um absurdismo absurdo.
Mas e aí? O personagem nessa posição, posição de ataque, de fúria, de combate, literalmente de superioridade amedrontadora frente a sala diz “Então, quem é o macaco? Quem vem dum safari, mano?” e agora, apesar de não ser uma interrupção dialógica, apesar de ainda simbólica, diz “Brother? Cê tá me paparicando?!”, sendo uma das frases que eu mais gosto na música, que numa simplicidade, como em todo o rap se faz,resume. Sério? Cê tá me paparicando? Isso tudo me lembra gente branca dizendo ‘Pô, mas não pode nem te chamar de pretinho?” ou ‘Me deixa tocar no seu cabelo’ ou aquelas porras de brancos de dread. Me lembra também o quanto o racismo, principalmente no Brasil, é dessa forma velada e ridícula, numa tentativa falsa de compreensão. Falar muito, ouvir pouco. Matar demais. Prender demais. Humilhar demais. Amiri, Rakim, eu, ou um monte de pretx que compreende com todas as forças e sentimentos o que está acontecendo ali na música, de literalmente perder as estribeiras de sanidade mental, sentimental e física pra cair num completo descontrole vindo de um problema que é construído estruturalmente por séculos, num ódio racial e você, branco, tá me pedindo calma? Tá me paparicando?! Porra…
A música, nessa tua ascensão de expressar o grito já atingiu seu objetivo. Amiri passa a raiva de uma forma única, de uma forma que dá pra sentir na pele literalmente, em arrepios, apertar de dentes e lágrimas quentes nos olhos. É gritante porquê é um grito impactante, que estala como um chicote, rasga. É cru. Que como diz em seguida “Entrei com pressa e esqueci a paz lá fora”, não é sobre paz, é sobre o contrário de paz, é sobre o inferno que foi criado, sobreviver num inferno, é sobre caos e dor e raiva e grito. Na sala de aula toda rica e branca faltou cadeira e carteira pra paz.
Depois do aviso, a batida da música para e entra a parte da música que, para mim, é a mais catártica e cuspida, ali tudo é dito e tudo é feito, expressado da forma não mais eloquente, mas, sim, grandiloquente, é um perfeito manifesto. O discurso tem quase completa totalidade da música, só a voz de Amiri grita alto, faz teus apontamentos, taca, literalmente, o foda-se e diz tudo, de novo, de uma vez e realmente eu não teria como fugir da estrofe completa porquê ela fala por si só como eu não poderia falar, não desse jeito:
“Aí! Isso aqui é por todas que me zoaram // — Pensa no teus pais-… // Foda-se! // Vou dar cinco- // Aliás… // Um minuto pra vocês calar a boca antes que alguém se exploda aqui! // Ah, perdoa a falta de etiqueta e educação que vem de berço, não vem de letra // — Mas- // Não tem “mas”, não tenta a sorte nem se meta se você nunca chorou pela morte de gente preta // E não sabe o que é nascer e não ter berço // É inconcebível // Igual Machado de Assis num ter verso // Ou morrer tentando provar que é tão ser humano quanto…”
E com esse soco no estômago esgoelado aos ouvidos, imediatamente me vem à cabeça como outro soco a morte da mulher, preta, ativista e vereadora na cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco, que é dolorosamente um dos símbolos desse ano sabático que foi 2018, em que, em minha visão, sua morte tem como símbolo e marco onde a política de não violência que espera-se para manter uma sociedade minimamente saudável caiu, aliás, não só caiu como foi destruída e esquartejada. Em que o delírio brasileiro e seus valores esdrúxulos e colonizados se mostraram sem a menor vergonha, rindo do inferno. Essa mesma mulher preta que, mesmo após a sua morte brutal, foi desrespeitada de formas completamente desonrosas, asquerosas e desumanas. É inconcebível, Amiri, a gente tendo que tentar provar que é tão ser humano quanto a tanto tempo. É inconcebível. Num desgosto tão grande pelo gosto de sangue na boca. Dói. E essa dor é expressa na música. Apesar dos gigantescos pesares, Marielle para sempre presente.
Gemidos. O tiro, ao final do rap, é dado finalmente. Todavia, sinto que desde o primeiro segundo, no longínquo convite que Amiri faz a escutar a história de Rakim, haviam muitas balas atiradas antes pra que esse tiro exista.
Ah, é óbvio… Mesmo depois disso tudo, a música fecha num outro convite cínico, mas imponente, dizendo:
“…Conte-me mais sobre racismo reverso.”, essa baboseira do caralho.