Depressão: Ontem tomei meu último antidepressivo, agora vou tentar falar.
A depressão, numa análise dos últimos tempos, é, sem sombra de dúvidas, a doença das últimas décadas — de mãos dadas com a ansiedade —…
A depressão, numa análise dos últimos tempos, é, sem sombra de dúvidas, a doença das últimas décadas — de mãos dadas com a ansiedade — isso porquê foi “aceita” por uma maior parte da sociedade, não de uma forma ideal, mas num sentido em que sabe-se mais sobre a mesma, sabe-se o bastante para ter mais gente dizendo que não é só drama, frescura ou falta de Deus no coração. A internet tem papel crucial nisso, pois, com a forma de atingir o mundo e também possibilitar uma forma de expressão em redes sociais entre outras coisas, abriu-se um possibilidade da doença ser vista de várias formas e por várias pessoas diferentes, com incessantes informações — apesar que essa disseminação desenfreada tem seus pesares em que a internet é um dos lugares mais depressivos possíveis da contemporaneidade — e até num sentido bizarro da coisa, onde ser depressivo dava um status de “estilo” ou “estética”, vide o que era (não sei se é mais) o Tumblr. Todavia, é um fato que a depressão arrefece boa parte da população mundial advinda principalmente das mazelas da estruturação do cruel sistema porco-capitalista, dos aspectos sociais arcaicos que são trazidos de tempos em que o ser humano era menos humano, enfim, esse texto não é sobre uma didática informativa sobre depressão, mas sim um relato, porquê, bom, eu também fui e sou acometido por essa doença a uns bons anos.
É bem difícil lembrar quando começou, mas é fácil e doído lembrar como começou. Autoestima. Desde o ensino fundamental eu não era tido como o moleque padrão e isso era esfregado na minha cara de inúmeras formas. Preto, gordo, feio, pobre, tímido e burro. Era o que eu entendia vindo de todos os ambientes que frequentava, ou seja, da relação tida em com a própria realidade. Casa, escola, clubes, pessoas, tais quais de alguma forma ou de outra, me reafirmavam essas características às vezes com dó, às vezes sem dó alguma. Sentia isso tudo de uma vez e não adiantava muito dormir porquê eu sabia que alguma hora eu ia acordar. Lembro de em um dia de calor eu estar completamente encolhido, com calça de moletom e uma blusa de manga longa enquanto minha mãe me perguntava “Por que cê tá assim, Matheus?” e eu respondia, quase sem voz: “Mãe, eu não sei”. É incrivelmente difícil saber o que está acontecendo — ou, pelo menos, era, pois, demorei um bom tempo pra ter acesso à internet pra ter tais informações, além de, na época, eu morar no interior de São Paulo, São Joaquim da Barra, cidade pequeníssima e de cultura majoritariamente conservadora e provinciana — e é justamente isso que a depressão faz, ela deteriora a própria percepção de realidade, criando inúmeros desencaixes que culminam num desencaixe existencial, ou seja, é bem comum que se pergunte: “Tá, pra que eu vivo, então?”.
Não é necessariamente sobre tristeza. Sim, é também, mas não só, tristeza é muito pouco pra ser depressão. Depressão é muito mais e por ser coisa demais, no final das contas, parece um vazio universal e vazio é contrário à existência.
Eu passei por todas as fases que são compreendidas hoje em dia como sintomas da depressão. Tristeza gigantesca, raiva gigantesca, melancolia, desencaixe, raiva, ódio, dor, autoagressão, silenciamento de si para si, choro, isolamento, pensamentos suicidas cotidianos, automutilação, tudo isso. Eu não sei quantas vezes eu fiquei entre me matar ou matar todo mundo. O que me fez não fazer nenhuma dessas duas coisas foi justamente estar depressivo demais pra simplesmente fazer algo, entre a lembrança de estar passando a faca de leve no meu pulso a estar planejando, de alguma forma, matar muitas pessoas, principalmente na escola, pois, afinal, ou eu me desencaixava do meu próprio corpo ou eu me completava meu vazio existencial anulando a existência de quem me fazia ser vazio. É bizarro ter a noção que eu, sim, poderia ter sido, em algum momento da minha vida, principalmente na adolescência, um desses moleques que se mata ou entra na escola atirando em todo mundo, em certa parte, isso só não aconteceu por falta de duas coisas, coragem e uma arma de fogo. Eu estava completamente desesperado, desesperado etimologicamente deriva de “spes” (esperança, em latim), a palavra “sperare” (esperar), com o prefixo “de”, significando falta, ou seja, a falta de qualquer esperança e essa falta não é vazia, é concreta demais e fluida, tanto é que esse desespero não passou, mas sim, ganhou outras formas. Não é a toa que meu primeiro livro é dedicado ao desespero.
Naquela cidade que me deu muitas coisas ruins e algumas poucas boas, eu queria mudança, mudança em todos os aspectos possíveis que eu conseguisse, quem mora no interior ou se muda pra estudar ou se muda por ter grana e na época pré-universidade eu tinha me tornado uma pessoa muito introspectiva que me tinha como refúgio a arte. Cinema, livros, videogame, televisão e alguns poucos amigos, ainda que fosse difícil expressar algo do tipo. E, também, eu nunca gostei de estudar, não estudar coisas relacionadas à escola, teoria e coisas do tipo, mas era uma das saídas, então, depois de dois anos de cursinho, eu consegui passar num vestibular numa cidade maior em que eu poderia tentar exercer aquela vontade de mudança, um tipo de novo começo, meus pais me ajudaram porquê sempre foi o sonho deles que ambos os filhos, eu e meu irmão, estudássemos, então, fizeram das tripas, coração, pra que isso possível até eu conseguir auxílio-moradia e alimentação pra aliviar. Deu certo, mas, como diria Hilda Hilst: “Tu não te moves de ti”.
Obviamente que houveram mudanças e potências, mas não era mais a cidade, era eu. Eu carregava tudo àquilo comigo, e colocar-se num ponto de mudança tão brusca quanto mudar-se de cidade, é muito caótico, muito mesmo. Apesar de eu ter passado pela compreensão no decorrer desse tempo passado que eu não era aquilo que me fizeram engolir que eu era, não era e não é sobre compreensão, obviamente que é passo importantíssimo, mas atravessar o ser por outro espaço, não só pelo intelectivo e compreensivo, é sobre sentir, como já dito, é sobre uma deturpação da realidade, em que a negação e a aceitação dessa deturpação travam um combate completo, confuso e exige demais do ser. Além de tudo de todas as desgraças já ditas, há o cansaço e o cansaço é único. É, de fato, um cansaço de existir.
Da mesma forma que as glórias mudam, as angústias também mudam e a universidade teve papel crucial. Claro, eu consegui, com muito esforço, expressar minhas potências, mas também haviam as frustrações, as tristezas, tudo aquilo que era carregado e também o próprio costume de se viver naquele modus operandi depressivo. Por um bom tempo, eu também romantizei a depressão e a tristeza, era o que eu mais conhecia, era o que eu achava que era, tinha uma ilusão de que eu estava confortável naquele lugar de ser, mas, não era sobre conforto, e sim sobre costume e, de fato, a gente se acostuma, mas não deveria. Lembro de mim, no meu antigo relacionamento, deitado na cama, completamente imóvel, chorando sem lágrimas, implorando pra sair daquele estado enquanto minha companheira tinha feito tudo que podia pra me ajudar pelo menos um pouco. Algumas vezes funcionava, outras não. E quando nada funciona, a sensação de claustrofobia dentro do próprio corpo é gritante.
Demorei alguns anos pra ir a terapia — mesmo fazendo psicologia e tendo a noção do quanto poderia ajudar minha saúde mental — tanto por grana quanto por não conseguir, entretanto, uma hora consegui ir e é imprescindível o quão foi bom, me ajudou, em situações de melhoras, de fato, porém, não foi o suficiente e então entrava outro processo: O de ir ao psiquiatra, tomar remédios, foram tempos obscuros, pois, era estranho, eu tinha que tomar remédios para uma tentativa de melhor da depressão, mas tomar remédios me deprimia ainda mais. Apesar de eu ter a plena noção que tomar remédios e ter um acompanhamento psiquiátrico em tempos de necessidade é importantíssimo, eu me sentia extremamente frustrado, num sentimento corrosivo que eu não tinha conseguido sair daquele estado por mim mesmo, o que é uma mentira grande, pois, ter a noção e se cuidar é autêntico. Se deixar ser tocado por ajuda é necessário e imprescindível, mesmo. Estar perto de pessoas e profissionais que estão para te ajudar te torna mais individuo do que o isolamento. Estamos perdidos sem conexões.
Depois de três anos de terapia e de um pouco mais de um ano com acompanhamento psiquiátrico, eu finalmente termino com os antidepressivos por me sentir que é tempo de testar como vai ser, não numa busca de cura total, mas mais pelo aprendizado e conhecimento que se tem durante esses processos, num sentido de saúde mental e da própria forma de existir, não me sinto curado, de forma alguma, ainda tenho episódios depressivos, mas é um tanto mais fácil conseguir lidar com tais de uma forma um pouco mais leve, sem necessariamente travar meu ser, sem necessariamente me sugar a sensação de vida por inteira. Não só os processos terapêuticos e psiquiátricos, mas o que acompanha, a arte, as relações, o alívio da pressão em melhorar, o que me faz preencher algumas lacunas dessa mazela mórbida. Não tenho expectativas sobre tal, pois, realmente não sei como será e ainda sinto muita falta da terapia, quero voltar, espero voltar em breve, e também sei que seria um processo mais leve voltar aos antidepressivos, não necessariamente fácil, mas menos difícil. Acho que uma das coisas que mais aprendi nessa guerra com a depressão é que é necessário ser gentil consigo mesmo e isso muda muita coisa.
Apesar dos pesares, agora, quero acreditar que é melhor viver do que morrer.
PS: SE POSSÍVEL, PELO AMOR DE DEUS, FAÇAM TERAPIA, FAÇAM TERAPIA, FAÇAM TERAPIA! Vou deixar aqui minha thread no twitter sobre acessibilidade a terapia, formas e informações que são válidas para facilitar o acesso.
Todas as artes são de Denis Sarazhin.