Divagações com Gabrielle Neves. [Entrevista]
sobre maternidade, música, vida, sonho, cultura e cervejas ainda não tomadas num bar jogando conversa fora.
Divagações é minha série de entrevistas mensais que serão postadas aqui na primeira e na última semana do mês.
Serão sempre cinco perguntas - apesar de não ser uma regra - no intuito de buscar um milhão de respostas e nenhuma ao mesmo tempo.
Não a toa eu não coloco só como entrevistas porquê acho que a palavra acaba formalizando algo que tá mais pra uma tentativa de emular e chegar mais próximo de uma conversa interessada numa pessoa que eu sei que é interessante, mas, que não conheço de forma íntima tanto quanto gostaria. Tudo isso numa mesa de bar, com cadeiras de plástico vermelhas ou amarelas, bebendo uma cerveja com tempo pra conversa fiada ou pra filosofia barata, portanto, ilustrem a leitura com esse tipo de cena.
1. Acho que de primeiro assim, eu quero fazer uma pergunta bem divagante. Eu conheci você por aí primeiro como fotógrafa, dona de feição de imagens, dum olhar fotográfico gostoso de ver. Depois, com esse... Digamos, cuidado com a música preta, com o Hip Hop e afins. Como é sua relação com ambas hoje em dia e como ambas se misturam pra ti?
– Vamo a primeira pergunta.
Eu achei muito engraçado que eu não lembrava que a gente se conhecia por causa da fotografia.
Me veio um sentimento de carinho no peito, porque a fotografia foi muito importante na minha vida, porque foi através dela que eu entendi que eu tinha outras possibilidades de existir pra além daquilo que me foi apresentado, sabe?
De trampo, de possibilidade de ganho financeiro, de existir mesmo, tá ligado?
E se eu fizer pausas (pausa) enquanto eu tiver falando é que eu tô fumando um cigarrinho (risos).
Então, a fotografia foi um lugar muito bonito pra mim durante muito tempo. Foi um marco inicial pra pessoa criativa que eu sou hoje em dia e ela me possibilitou muitos contatos, muitas amizades, muitas pessoas que eu tenho carinho. Só que veio uma pandemia, veio uma maternidade, veio um momento de fazer escolhas entre a lente que eu sempre quis - que tá um pouco mais barata, mas, um pouco mais barata ainda é mil reais - ou então fazer a compra do supermercado, tá ligado, do mês.
Então (pausa) foi uma questão de prioridade mesmo e a fotografia acabou ficando de lado, ao ponto que hoje em dia eu não enxergo (pausa) não me enxergo profissionalmente enquanto fotógrafa, sabe? De viver de grana, viver de grana não, de viver de fotografia, transformar em grana, transformar em trampo e, por muito tempo, isso me deixou muito triste, mas, hoje em dia eu tenho um sentimento bom, que eu voltei a fotografar como hobby e, é, até me abriu algumas portas, do tipo, entender que nem tudo precisa virar o seu trabalho, sabe? Tem coisas que são ótimas se permanecerem como um hobby. Porque é isso, tipo, posso não estar mais trampando profissionalmente com fotografia, mas o meu olhar sobre o mundo ainda é de uma fotógrafa, sabe? Ainda é de uma fotógrafa preta, periférica, mãe, LGBTQIA+, enfim... Eu tirei todos esses contextos da fotografia, porquê foi através da fotografia que eu comecei a trilhar caminhos culturais, digamos assim, e que caiu no Hip Hop.
Então hoje em dia existe essa relação de começo de uma trajetória e esse ponto de encontro, né, entre duas áreas, é, e isso de estar em um rolê e fotografar as pessoas que estão ali fazendo esse movimento acontecer, tanto nos bastidores, quanto fora deles, de uma maneira mais afetuosa mesmo, de tipo, pô, eu quero mostrar seu rosto, de uma maneira mais leve e tranquila, então acho que hoje em dia é essa relação. Não sei se respondeu a pergunta.
2. Além das duas artes citadas, eu sei que você escreve e pá, tanto num viés afetivo quanto num viés jornalistico. Como é que foi essa parada de levar isso pro tiktok? Não só isso, mas, de bancar a parada. Eu particularmente acho que - apesar de várias pessoas estarem falando coisas completamente sem chão - tem que ter coragem pra bancar algo, num pequeno espaço de tempo, tentando explicar algo que envolve história, cultura, social e arte.
– A produção de conteúdo no tiktok foi algo que começou de uma maneira muito engraçada (risos).
Porque a primeiro momento foi uma questão um pouco egoica, sabe? Preciso admitir isso. Que foi com objetivo de encontrar um local onde eu ficasse mais à vontade, pra eu trabalhar a minha imagem, a minha autopercepção, a minha fala, a minha articulação, sabe? Porque eu me vi em meios onde eu precisaria me fazer um pouco mais visível, né? Não falo visível de fama, mas de precisar falar, me mostrar. Não que isso fosse exigido, sabe, mas era algo que eu queria fazer e eu precisava trabalhar isso.
Chega se você ver meus primeiros vídeos, era algo muito tímido, algo inseguro e, hoje em dia, eu ainda não tô, meu trabalho ainda não tá lapidado da maneira que eu gostaria, mas já existe uma evolução.
O segundo momento foi quando eu entendi que eu conseguiria criar ali. Que eu poderia democratizar o acesso ao conhecimento. Que eu poderia tornar esse conhecimento mais fácil de ser transmitido, porque enfim, a gente quando tá nesse meio cultural, principalmente nesse meio jornalístico, a gente esbarra com inúmeras questões de acessibilidade, a gente esbarra no academicismo, e isso é extremamente limitante, sabe? De, pô, acesso. Educação e etc, de uma linguagem rebuscada que às vezes você fica pô "por que?" Preciso falar desse jeito? Sabe? Preciso mudar meu dialeto, parar de falar gíria, preciso falar de maneira mais formal, pra eu conseguir ter acesso a esse conhecimento? De coisas que já estão no meu dia a dia, como a música, como a dança? Então eu entendi que o meu trabalho jornalístico poderia ser desdobrado dessa maneira e que poderia tá ali, sabe? De poder sintetizar, mesmo que às vezes de maneira rápida todo esse rolê, pra democratizar esse acesso, sabe? Porque eu acredito que seja o caminho. Sei que a plataforma tem várias questões, mas eu ainda tenho um olhar muito educacional sobre ela. Eu acho que esse é o meu papel.
Atualmente é algo muito doido porque eu tive contato com vários artistas e uma percepção de pô, o eixo Rio-São Paulo só sabe falar do eixo Rio-São Paulo. Se eu tenho uma possibilidade, eu tenho alguns seguidores que se eu falar sobre um artista nortista, eles vão ir atrás, vão escutar, vão conhecer? É isso que eu quero fazer também.
Além de democratizar, é sobre descentralizar. Então eu tomei essa coragem pra fazer isso e tem me ajudado a tomar as rédeas de “eu sou uma jornalista cultural”, eu posso, enfim, não ter tido uma formação acadêmica, de concluir uma faculdade, mas isso não anula o meu estudo e a minha capacidade de ser uma comunicóloga, então foi algo muito legal e me fez entender várias questões de como, de elitismo mesmo, sabe?
Eu acho que eu já divaguei (risos)
3. Lembro que uma vez, lá nuns anos atrás, você me passou um texto seu que, se não me falha a memória, se chamava "não-ser", sobre colorismo. Preta demais pra ser branca, branca demais pra ser preta. A clássica ferida do movimento preto no Brasil. Enfim, revivendo essa memória e compreendendo que passou tempo pra caralho: E aí, tu sente é mais hoje em dia? É no sentido de ser. Como é que você lida com isso hoje em dia?
Ps: Já usei aquele texto em recomendações terapêuticas.
– Sobre a terceira pergunta, é muito doido você trazer sobre esse texto, eu realmente não esperava essa. Mas enfim, eu li esse texto esse mês e eu decidi apagá-lo. Não porque o que eu li ali era um desserviço ou algo totalmente escroto, até porque ali eram as dores de uma menina de 18 anos que tava caminhando pra aceitação do ser social que ela era, sabe? Da representação daquele corpo no mundo.
Esse “não-ser”, sobre essa questão do colorismo, é algo que, esse limbo existencial, é algo muito doloroso porque se você não consegue se identificar, você não consegue se entender e causa diversas questões.
Você como terapeuta sabe muito, como psicólogo no caso, sabe muito melhor do que eu.
E até respondendo a sua pergunta: eu... Hoje em dia minha existência não me dói.
Eu acho que é isso.
Eu consegui trilhar caminhos que me fizeram entender que o bullying que eu sofria não era só porque eu era uma criança… Uma nerdzinha gorda. Era a falta de amor e a sexualização que eu sofri durante a adolescência, não era só porque eu era mulher, era porque eu era uma mulher negra. Porque eu sou uma mulher negra, né, no caso. Então aquele momento de, sei lá quantos anos atrás, porque eu não sou de exatas (risos) e eu não sei contar de trás pra frente direito sem me perder (obrigado TDAH) mas, ali, eu ainda tava lidando com as dores do baque de “caralho, esse sistema foi feito para que eu não exista”. Hoje em dia eu sei, me dói, hoje em dia é algo que me atravessa, mas não como antes. Hoje em dia eu entendo a potência, entendo as possibilidades existenciais.
Eu tenho noção do ser social que eu sou, eu sei até onde eu posso ir, até onde eu posso falar, enquanto uma pessoa de pele clara. Como é a articulação política e social pra minha existência, então, enfim, eu acho que hoje em dia eu tô em paz e ciente de tudo, o que às vezes, né, também dói um pouco.
4. Essa é uma que queria ouvir diretamente tomando uma cerveja falando merda numa mesa de bar, mas, com essa impossibilidade no momento, pergunto: A música se tornou o que após a maternidade? Se tornou outra coisa? Transmutou?
– Também queria responder essa quarta pergunta numa mesa de bar, porque ela é muito ampla e ao mesmo tempo muito pequena. É algo doido. Amo suas perguntas.
Depois que eu escolhi seguir com uma gestação não planejada, em meio a uma pandemia, com medo constante de perder as pessoas que eu amava e eram grupo de risco, com medo da existência dessa criança, com medo de como seriam as coisas pra mim, eu voltei pra terapia, porque eu tinha parado durante muitos anos por um rolê que um dia eu te conto sentada numa mesa de bar.
Mas enfim, eu voltei pra terapia e na terapia eu consegui entender que a música, ela é parte daquilo que é meu. Eu entendi no meio do meu processo de individualização que a música faz, faz parte da minha essência. Então a música acompanhou os meus processos de mudança, a música acompanhou a morte da pessoa que eu era antes, porque quando existe a presença de uma criança, você, quem você é deixa de existir, e, ao mesmo tempo, você precisa conhecer essa criança que tá vindo ao mundo. Você precisa se conhecer.
Então a música me acompanhou nesse processo, a música esteve ao meu lado e a música se faz muito presente na criação da Niara, né, da minha filha.
O sentido da música mudou pra mim porque a música passou a ser o meu trabalho, a música passou a ser aquilo que (pausa) acompanha os meus processos, as minhas dores e as minhas felicidades.
Antes era algo mais superficial, então a música se tornou algo muito mais profundo.
Na real, não.
Eu tive maior percepção do papel da música na minha vida.
A música faz parte daquilo que é indivisível em mim, sabe? E eu transmito isso pra Niara, ela é criada desde novinha escutando música, ela tem noção de musicalidade, ela tem pessoas que… Tios e tias que também tão nesse meio, ela vai em show, ela vai em roda de samba, ela tem instrumento e isso também é um pouco do afago, porque era isso que eu queria ter tido.
Enfim, eu cresci num lar evangélico, e a música pra mim era o que eu aprendia dentro da igreja. Ela tem possibilidades maiores, então acho que a música transmutou pra… pra minha essência. A música é a minha essência.
5. Ó, eu sei que essa pergunta parece batida, mas, deixa eu florear ela: Apesar de acompanhar mais de longe do que eu gostaria, eu sei que a Niara, sua pequena, vem se não na pandemia, bem perto da pandemia, né? Portanto, digamos que foram/são duas mudanças absurdas assim, pá-pum e, agora, pelo que vejo, com a Niara mais crescida, nitidamente há uma retomada de uma autonomia e, não só, também autenticidade. Dito tudo isso, me dá vontade de saber koé que tu quer nesse futuro. Papo de sonho mermo. Agora, vivendo o governo Lula, que faz a gente esperançar melhor. Que que cê pretende fazer relacionado a todos esses assuntos que eu trouxe a tona? Papo de desejo mermo.
– Eu tô chorando um pouquinho com essa quinta pergunta porque… É… Eu passei um pouco sobre isso na quarta, né, respondendo a quarta pergunta, mas foram dois processos extremamente assustadores, essa que é a real. Eu ainda não sei lidar com isso.
Porque (pausa) quando eu tinha acabado… Ia fazer 19 anos, eu fui expulsa de casa e, enfim... Eu vi nessa expulsão a possibilidade de começar a viver uma vida adulta. Viver até uma adolescência, sabe? Um pensamento um pouco compensatório? Porque eu vim de um lar evangélico, eu vim de um lar onde... Eu trabalho desde os 13 anos, então eu não tinha essas possibilidades de fazer as coisas, eu não tinha liberdade pra existir e ser adolescente, sabe? De "vamo sair", "vamo beber", "vamo fazer qualquer coisa". De viver as coisas na época que elas deveriam ser vividas.
Eu fui morar junto com o meu companheiro e veio a pandemia, então além de uma pandemia, três meses depois veio uma gestação. E… Uma gestação não planejada, onde eu escolhi seguir com ela, então são muitas mudanças que eu ainda tô aprendendo a lidar porque eu não tive tempo de conhecer a pessoa que eu era antes, pra me despedir dessa pessoa, viver esse luto e me dar a chance de conhecer a pessoa que eu sou hoje em dia, pós-maternidade, né? Eu só conheço essa pessoa que eu sou hoje em dia e isso é um pouco triste, porque as coisas não deveriam ser assim, mas, eu acho que é um outro papo.
A Niara tá com dois anos e três meses, né, no momento que eu respondo essa entrevista, e ela… Atualmente eu tenho possibilidade de existir para além da maternidade.
Eu não tive rede de apoio. Algumas questões de rede de apoio foram também por questões do covid, ao mesmo tempo que eu tinha familiares e parentes que não se cuidavam… familiares, parentes e amigos que não se cuidavam, e eu cortei essa relação de convívio, eu escolhi, falei “olha, eu moro com alguém de grupo de risco, eu tenho uma criança recém-nascida, eu não vou me expor”, então as pessoas viraram a cara, no sentido de “isso tá sendo exagerado, então não vou te ajudar”.
Também tive amigos que estavam sofrendo e não tinham como se fazer presente, enfim... Atualmente eu tenho essas possibilidades, sabe? De existir para além da maternidade. De voltar a ir em show, de poder sair, de poder viver um pouco fora disso, fora desse papel social. Isso também se dá muito ao meu companheiro, por ser um pai presente, e eu sei que a régua da paternidade é muito baixa, mas eu acho que quando a gente tem a possibilidade de exaltar homens negros pela sua paternidade, a gente precisa fazer isso.
Voltando à pergunta, é… eu sonho com possibilidade.
Eu sonho com a possibilidade de existir, essa que é a real, porque esses últimos quatro anos foram completamente assustadores, enquanto uma pessoa preta, pobre, periférica e LGBTQIA+, foi algo assustador de viver.
O que eu sonho é a possibilidade de vida pros meus, pra mim.
É a possibilidade de existir criativamente. Poder existir com felicidade, poder ter acesso à cultura, poder transitar na rua sem medo. Eu acho que essa é a real. De poder me tornar um agente da cultura pra poder fazer as coisas acontecerem, pra poder mudar a vida das pessoas.
Eu acho que é um pouco disso. Eu não sei se existe uma resposta certa, porque na minha cabeça tudo isso se relaciona, mas eu não sei se se relaciona fora da minha cabeça.
Enfim… Acho que é isso.
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transcrição de audio: Ivy.