E eu.
O fio da meada começa por mim, a menor parte do que esse texto tem a passar. Vão fazer cerca de uns seis meses que me mudei para Belo Horizonte, o Texas, o Coração do Mundo. Eu sou do interior de São Paulo, São Joaquim da Barra, uma cidade de uns 50 mil habitantes, daquelas que tem uma igreja-matriz como centro da cidade. Depois morei em Uberaba, triângulo mineiro, pra estudar e depois de formar consegui vir pra BH. É a tal parada do moleque que queria ir pra cidade grande e agora estou nela. Desde a gênese do meu desejo de vir pra uma cidade grande — sei lá, treze, quatorze anos — até agora é um tanto óbvio que muita coisa mudou, tanto num microcosmo, um único ser, quanto num macrocosmo, uma cidade, um estado, um país, um mundo, vários mundos. Pois é. Se você lê o que já escrevi anteriormente, sabe que a partir de 2018, por aí, o rap tomou uma parte absurdamente importante na minha vida. Tive algumas salvações na minha vida, o rap eu posso considerar que foi a última até então, sem hipérboles. Ao fim da minha graduação, graças ao convite de um amigo meu, esforços dos meus pais e, claro, brio também meu, fiz — e faço — das pedras, ouro, pra conseguir me manter aqui. É foda… Enfim, vim morar em BH no momento em que, nitidamente, é a cidade mais expressiva e diria até importante pro rap e pra cultura do hip-hop brasileiro atualmente. A efervescência da arte preta não só com o rap, mas também com os slams grita na cidade, em todos os cantos se vê, se ouve. Do centro a margem. Do cume ao topo. Do tudo ao todo. Chego bem no momento em que a cidade tem que engolir o hip-hop, onde o hip-hop não é só a margem, o “debaixo da terra”, é parte da cidade, quer queiram ou não os filhos dos filhos dos filhos dos antigos senhores de engenho.
E com tudo isso, é incrível ver a capital de um dos estados que, anteriormente, foi um dos polos mais intensos da escravatura, ser, agora, a capital do hip-hop no Brasil. É uma parada gigante.
Atualmente, não dá pra se falar sobre rap, principalmente em Belo Horizonte, sem dizer o vulgo de Gustavo, ou seja, Djonga. Djonga é o símbolo vivo que carrega essa mudança na cidade e no Estado, de fato, ele, como símbolo colocou a cidade no mapa e quando uso a palavra símbolo é em seu sentido mais cru possível, o hip-hop e o rap de Belo Horizonte não é só de Djonga, está muito longe disso, ele é símbolo, mas um símbolo que é vem por mérito ao que foi feito e quem estava ao lado. A própria DVTribo é vanguardista disso. Um grupo de rap que traz um ex-morador de ocupação, uma mulher lésbica, um jovem preto e dois caras que em maior parte satirizam o rap, é de uma coragem indubitável. De qualquer, forma, usufruo aqui do símbolo Djonga pra falar sobre tudo isso que já foi discorrido no texto, sem esquecer que não é um transmutação feita por um homem só, mas sim por inúmeras pessoas.
Coincidentemente, de novo, eu moro na Zona Leste de Belo Horizonte, na mesma região que Djonga mora e não é incomum eu estar andando pra ir ao banco ou na mercearia e trombar Djonga por aí tomando uma cerveja, fazendo churrasco na pracinha aqui embaixo ou indo na famigerada barbearia 244 que aparece nos stories do próprio, todavia, não é sobre encontrar alguém famoso, mas justamente a percepção de mudança que se percebe pelo símbolo que Djonga carrega. Pra além de uma mudança grandiloquente, como na dinâmica de uma cidade, mais impressionante que isso, são as nuances, na quebrada, na comunidade.
Acompanho Djonga já faz um tempo e é impressionante um dia estar vendo ele tocando num grande festival e num outro dia estar tocando de graça na favela. Isso não é raro, quase toda semana se acha um show de graça de Djonga em prol de alguma instituição da periferia ou por alguém da periferia ou pelos parceiros/as ou mesmo junto com uma galera montar uma piscina pequena no meio da praça pra tocar e cantar samba.
A parada é que, de novo, Djonga e quem veio e vem com ele mudaram a dinâmica de uma cidade inteira. Cidade polo do estado da mineração, mineração essa que foi polo das mais cruéis, desgraçadas, gananciosas e brutais da escravidão. Pense, estou falando aqui de um dos atos mais absurdamente cruéis da humanidade, que fora a escravatura, pois, pense ou leia sobre o ápice brutal do momento mais brutal do Brasil. Pois é, Minas Gerais pode ser a terra do pão de queijo e o caralho, mas tá bem longe de ser só gostosura. Tem sangue escorrido por essa terra e até hoje com os crimes da Vale, muito preto morre soterrado fazendo trabalho absolutamente inumano que ninguém fica sabendo.
Belo Horizonte é a primeira cidade que consigo ter afeto, nas outras cidades sempre foram cidades eram sobre emborança — neologia ensinada por uma amiga socióloga minha que é justamente o sentimento de estar sempre pronto pra ir embora — e BH não, é sobre uma ficância — usando novamente do neologismo pra ilustrar melhor — e esse afeto vem justamente por pisar aqui nesse momento de subversão, transfiguração, transmutação, mutação, mudança e todos os sinônimo que possam existir para o verbo “mudar”.
Djonga lançou uma música recentemente numa ação com a Budweiser, “Sexta”, que tem como capa o viaduto Santa Tereza que é onde uma das principais — se pá a principal — batalhas de rap acontecem, mas, obviamente, debaixo desse mesmo viaduto. Lembro que logo na minha chega, num ensaio fotográfico feito por uma amiga minha — que hoje dividimos apartamento, aliás — ela me levou lá, apontou pro palco e falou “Djonga nasceu aí” e eu fiquei todo “…caralho…”, saca? É um nome, um mano, um preto, um ser que tem potência e poder gigante sobre a cultura de uma cidade, de um estado e de um país.
O estado que tiveram os atos mais absurdamente abruptos de um dos tempos mais brutais da história brasileira, hoje, tem a maior batalha de MCs do Brasil. Eu estive lá na do ano passado e, realmente, é gigante e linda. A batalha debaixo do viaduto a polícia racista pode até conseguir cortar depois de algum horário, quero ver parar a maior batalha do Brasil e, pode botar fé, que é gente pra caralho.
Quando em FALCÃO, uma das músicas que me fez chorar — não costumo chorar com músicas — e que fecha o álbum LADRÃO, o mesmo diz:
“Eu sigo naquela fé
Que talvez não mova montanhas
Mas arrasta multidões e esvazia camburões
Preenche salas de aula e corações vazios
E ainda dizem que eu não sou Deus, porra, eu faço milagres!”
É sobre isso. Estando aqui vivendo, vendo, ouvindo, sentindo, percebe-se que o mesmo se intitular Deus não é sobre uma prepotência, muito menos sobre uma hipérbole, é sobre fazer com que os moleque preto e as mina preta, do morro, dos cantos, consigam perceber que existem e que podem e que tem potência pra viver. Isso não é algo que o suposto Deus etéreo de vocês fez com a gênese de toda essa porra?
Belo Horizonte, atualmente, é a cidade da contradição ou da dicotomia — e serviria também pro Brasil, mas vou me restringir aqui porquê aí são outros 500 — e Djonga usa muito das contradições em suas músicas — o canal Leleologia fez um vídeo incrível sobre essa característica — e também na música FALCÃO ilustra bem isso quando diz:
“Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho
Corpos negros no trono, me sinto olhando o espelho
Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho
Que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho”
É incrível e bizarro viver em Belo Horizonte sendo um homem preto, todavia, que bom que eu vivo na era pós-Djonga. Ou melhor, durante-Djonga.
Ansioso, Gustavo, pelo dia 13 de março de 2020 em que você vai falar mais sobre as histórias da sua área no novo álbum.
Agradeço por poder ouvir.