Ebony, bitch: A mudança do status quo no trap brasileiro.
2019 foi um puta ano pro rap e pro trap nacional, analisando desde o início da década até agora, marcam-se diferentes tempos e personas…
2019 foi um puta ano pro rap e pro trap nacional, analisando desde o início da década até agora, marcam-se diferentes tempos e personas que floresceram, amadureceram, maturaram, envelheceram ou esqueceram; nesse final de década, também aparece Ebony, uma mina dezenove anos, do Rio de Janeiro, que traz uma mudança grandiosa pro trap brasileiro e, não só grandiosa, como também necessária, que atravessa a música e atinge o todo do trap, ou seja, atinge o fenômeno cultural e como ele funciona.
O trap brasileiro importando muita coisa do trap estado-unidense, traz consigo os valores e símbolos. O jeito de performar, sobre o que falar, estética, a linguagem e, claro, adiciona também formas originais, numa mistura que, invariavelmente, acontece numa importação, principalmente num viés artístico-cultural e apesar do fenômeno do trap trazer consigo questões de autoestima e dinheiro, principalmente para as pessoas pretas (apesar de uns brancos vazios), em que é uma música egoica de fato, mostrando faces de pessoas pretas com dinheiro, com autoestima elevada, com expressões que divergem um tanto do rap — ou do famigerado rap de mensagem — que desde os anos 90 denuncia as situações cruéis e sociais da sociedade brasileira. O trap expressa sobre prazer. Prazer pelo sexo, pela droga, pelo dinheiro, pela beleza, pela festa, num jeito que usufrui do exagero como uma imposição, passando por outros assuntos também, todavia, são sempre assuntos presentes nas músicas. A explosão do trap acontece de 2017/18 e se consagra completamente em 2019 dessa forma, trazendo vários nomes que cravam o lugar na cultura brasileira, como Jé Santiago, Dfideliz, MC Igu, Sidoka, Matuê, entre outros.
Vide que os nomes citados são apenas de homens e não é por acaso. Assim como o rap, que tem um processo parecido, traz consigo também o machismo de forma exacerbada. Num movimento cultural em que é majoritariamente produzido por homens tendo como alicerce o ego, inevitavelmente o machismo se mostra explicito, principalmente na objetificação das mulheres, muitas vezes de forma grandiloquente e bizarra. O trap é um gênero musical que assusta os moralistas e isso é bom. Porém, traz consigo, nessa forma de performar, também mazelas que devem ser, sim, discutidas, revistas e criticadas.
E é aí que entra Ebony é brilhante.
Em entrevista a VICE, Ebony incrivelmente deixa dito:
“Artistas vão fazer arte, consigo me expressar através do rap mas também quero conseguir me expressar através de outras formas. Não gosto da definição rapper, porque não quero fazer só isso. Eu quero ser tipo o Childish Gambino com vagina.”
Ebony (, bitch) aos seus dezoito anos e lança “Ca$h Ca$h” e aos dezenove não há como falar de trap brasileiro sem falar de Ebony. Éparte do que compõe o trap e não só compõe como atualiza o mesmo. Mina, preta, jovem, da favela e mandando um flow único, ela traz consigo a expressão de uma mulher jovem num meio que enaltece a hipermasculinidade e consegue transgredir isso com louvor. Nas letras em cima dos beats fala, sim, de todos os assuntos citados acima, mas também sobre a visão da mulher preta em cima disso, que parece não ter a intenção de um discurso militante, mas que o é por existir, onde nitidamente demonstra a sua compreensão de toda a construção do trap brasileiro, de onde vem, de onde fala, de onde vai, pra quem fala. Como em “Glossy” música que passa desde seu gosto por Naruto “Fica tranquilo que na minha base tem glock, comida e Naruto” ou mesmo numa situação de rolê e muita droga “Abre a porra do carro, abre a porra do carro que eu acho que ela usou muito” até frases intensas sobre quem é, sobre como é visto a pessoa preta/favelada “A preta ganhou, olha que ironia // Eu cresci na rua aprendi com a pista // Se é dia de baile, duas horas nós pia // Eles só reclamam e não sabem minha trilha // Quero dar dinheiro pra minha família // Quem sabe um dia até ter uma filha // E a filha da filha já vai nascer rica” ou como no verso marcante da música “CONFIO”, do rapper mineiro FBC, que faz participação e consegue atrair todos os ouvidos pra sua parte, dizendo “Eu inspiro manos que são igual a gente (Ayy) // Isso é mercado negro // Eu tô igual a Fenty, tudo que eu tenho eu pretendo passar pra frente // Hoje me olham e competem tête-à-tête (Yeah, yeah, yeah) // Antigamente me compravam pelos dentes (Yeah, yeah, ayy) // Então pensa bem // Então pensa bem (Ayy) // Se faz sentido ou não um preto de corrente (Yeah, yeah, yeah)”
Ebony existir e ser um dos expoentes brasileiros no trap brasileiro, um dos gêneros mais masculinos e machistas existentes, por si só já é uma imposição de mudança que se torna inevitável. Não é teoria ou vontade apenas, é acontecimento e, quer-queira, quer-não, inevitavelmente, há de se olhar, refletir e acompanhar a mudança do gênero de mãos dadas as mudanças dos tempos, onde não há espaço para qualquer opressão perante qualquer tipo de minoria. Não só em relação ao próprio discurso — que extrapola suas músicas, mas também é muito sensata em suas redes sociais — da artista, mas também na performance da própria que tem uma presença fortíssima que impõe respeito.
É muito interessante e também importante que Ebony exista, não só como os títulos aqui já expressados, mas também como símbolo dessa mudança, dessa atualização, que apesar de ter muito a se construir e também se desconstruir, demonstra que já é, por si só e, dessa forma, como diz no verso já citado, tem passado, com glória, pra frente. Perceber como atinge as pessoas com a sua música denota isso e, sendo eu também preto, tem poucas coisas que são tão tocantes quanto ver jovens pretos e pretas estimulando sua autoestima o máximo possível.
Ebony é um suspiro, uma boa tragada, um respiro em neon pra um gênero musical e cultural muito discutível, e que bom é poder respirar.