“FEAR.”, de Kendrick Lamar: Os medos pro homem preto.
Eu tinha cansado um tanto do rap. Já estou a alguns anos em imersão ao rap no sentido artístico, cultural, sociológico, existencial mesmo…
Eu tinha cansado um tanto do rap. Já estou a alguns anos em imersão ao rap no sentido artístico, cultural, sociológico, existencial mesmo e, bom, meus ouvidos e meu corpo como um todo estava cansado, também pela loucura que foi e é 2020/2021 no mundo e especificamente nesse país, era coisa demais acontecendo de uma vez. Nisso, realmente acabei por dar um tempo em ouvir rap, agora sim, sentia a falta que me fazia ouvir outros sons e coisas do tipo e foi e é bom, porém, numa lembrança efêmera, relembrei do que eu sentia, logo quando o hip-hop e o rap se tornaram partes cruciais da minha ética de vida, ouvindo o álbum “DAMN.” de Kendrick Lamar. Meu terreno tá longe de ser o rap internacional, sei e ouço pouco. Bagulho é Brasil mesmo. Mas, pô, o “New Kung-fu Kenny” ou “Pullitzer Kenny” ou “Mr. One through Five” ou só Kendrick Lamar mesmo, nessa lembrança, me puxou de volta pro quanto o rap consegue explicar e expandir afetos, afetações e pensamentos.
Acho que toda vez que uma pessoa negra canta rap, intrinsecamente e invariavelmente, há algumas coisas que atravessam o “ser no mundo”: A necessidade gritante de expressão, uma ode a cultura e ancestralidade, sobrevivência e vivência, resistência e resiliência e, também, provar em absoluto que quem está ali está vivo.
(Nem vou me cansar em falar sobre quem canta rap pelo hype. Quem sabe, sabe.)
Esses aspectos citados, a meu ver, constroem tudo que o rap como arte e cultura pode fazer e não só fazer, como também potencializar outros atos. Isso é glorioso pra caralho, muito mesmo, todavia, não deixa de ser um peso pesadíssimo de se carregar, tanto como pessoa quanto como artista, pois, apesar do comum conceito de divisão de “pessoa física” e “artista”, serve só ao didatismo. Quando posto no beat, na filosofia, na ética, no som, na dança, há um só corpo ali no palco, na quebrada, na batalha ou seja lá que lugar for. Preto corpo esse que ao mesmo tempo que faz da negritude, da resistência, do movimento do corpo, enfim, de toda afetação boa que o rap nos dá, há também, o outro lado, lado esse real, cru, rua mesmo, sociopolítico. Morte, injustiça, sofrimento, dinheiro.
Ao cartografar esse aglomerado de afetações que se traz dentro da expressão do rap com a intensificação de como a cultura quebra barreiras e toma o mainstream, de como nascem personas desse movimento, monumentos vivos, homens, mulheres, pessoas, demonstrando a vulnerabilidade e a proteção que é estar em cima de um palco pra muitas pessoas, chegando em inúmeros milhares, milhões de ouvidos, eu perguntava lá dentro de mim: “Pô, esses cara não tem medo não?”
Kendrick expressa, explica, ilustra, vive e, por consequência, me responde na décima segunda faixa do álbum “DAMN. (2017), “FEAR.”
“Wonderin’ if I’m livin’ through fear or livin’ through rap. // Querendo saber se estou vivendo através do medo ou através do rap”
“DAMN.” é um álbum extremamente direto, não a toa, todas as músicas são palavras únicas e sempre com um ponto final, nessa jornada do álbum todo, na envergadura da caneta de Kendrick, com as palavras ele desenha cenários, sensações, apontamentos, de um jeito que parece que são milhares de agulhas atravessando a sensibilidade do corpo. Quando ouvi “FEAR”, lembro de algo clicar na minha cabeça, me apeteceu imediatamente, depois de ter passado pelas músicas mais intensas do álbum, aquilo ali me trazia um sentimento distinto que parecia muito com o sentimento da quinta faixa do álbum “FEEL.”, algo que era tão íntimo, tão profundo ao mesmo tempo que era tão identificável, tão compreensivo e compreensível… Concateno na palavra vulnerabilidade, portanto. O álbum todo é muito íntimo, mas, nessas duas músicas, mas, especificamente em “FEAR.” há uma especificidade aguda.
Pensei, então, nos homens pretos.
Há disseminação necessária de força, resiliência, revolta e revolução. Algo ativo, luta mesmo. Batalha, guerra, tal qual como deve ser inclusive no rap. Pra mim, é a segunda maior forma de expressão preta atualmente, logo após, a todos e quaisquer expressões das mulheres pretas — e isso é importante, imensamente importante, até pensando em estratégia revolucionária contra o status-quo, é necessário estar firme e forte pra aguentar a labuta e conseguir dançar, todavia, nesse grito de desespero e a constante posição de vigília preta acaba-se, invariavelmente, sufocando a expressão de outras partes demasiadamente humanas que são tão importantes quanto a postura de batalha, o que é justificável, sinceramente, porém, não deixa de ser crucial trazer isso a superfície. Digo justificável porquê estou falando de vulnerabilidades. Veja bem, uso, propositalmente, a palavra “vulnerabilidade” e não “fragilidade”, onde é muito comum achar que uma é sinônimo da outra, o que é uma falácia sem igual. Fragilidade é sobre medo de quebrar, vulnerabilidade é sobre a potência de se deixar atravessar pela vida.
([Voicemail: Carl Duckworth]
What’s up, family? Yeah, it’s your cousin Carl, man, just givin’ you a call, man, I know you been havin’ a lot on yo’ mind lately and I know you feel like, you know, people ain’t been prayin’ for you but you have to understand this, man, that we are a cursed people Deuteronomy 28:28 says, “The Lord shall smite thee with madness And blindness, and astonishment of heart”, see, family, that’s why you feel like you feel like you got a chip on your shoulder. Until you follow his commandments, you gonna feel that way… // E aí, mano? Sim, é seu primo Carl, só tô te ligando, cara. Eu sei que você tá de cabeça cheia ultimamente e eu sei como se sente, tá ligado. As pessoas não estão rezando por você, mas você tem que entender que somos um povo amaldiçoado. Deuteronômio 28:28 diz: “O Senhor te ferirá com loucura e com cegueira, e com pasmo de coração”. Veja, cara, é por isso que você sente tipo um ressentimento, até que finalmente cê vai ouvir que sempre se sentirá assim…)
Após a introdução da música, entra um interlúdio de uma fala a Kendrick que impõe a atmosfera amedrontadora que, em poucas palavras, atravessa o cotidiano mais humano da “cabeça cheia” à citação bíblica de Deuteronômio 28:28, trazendo a condenação e destinação divina que intoxica com o medo.
Kendrick Lamar constrói a música com quatro versos além do refrão, pontes, etc. e há uma construção de duas partes na letra, a primeira, tal qual seriam os dois primeiros versos, onde as frases “I’ll beat yo ass (…) // Eu te arrebento (…)” e “I’ll prolly die (…) // Eu provavelmente vou morrer (…), usufruindo da repetição pra demonstrar pressão e a paranoia cruas, da violência que ronda e da verdade paranoica, concatenando em falas ou situações que não explicam o sentimento, mas, impõe o sentimento de medo, afinal, é claro aqui os dois medos mais básicos do ser humano que são violência e morte simbolizados em tais frases. Ele, com essas ilustrações auditivas, consegue atravessar do mais real, estrutural e cru ao mais profundo íntimo de si próprio como ser no mundo, entretanto, são no terceiro e quarto verso que Kendrick larga as repetições que montavam imagens situacionais e mergulha profundamente em si próprio falando intimamente sobre si próprio em que ele não mostra situações, ele conta parte de sua própria história diretivamente.
([Verse 1: Kendrick Lamar]
I beat yo’ ass, keep talkin’ back
I beat yo’ ass, who bought you that?
You stole it, I beat yo’ ass if you say that game is broken
I beat yo’ ass if you jump on my couch
[Verso 1]
Eu te arrebento, continue respondendo
Eu te arrebento, quem comprou isso pra você? Você roubou
Te arrebento se você falar que o videogame tá quebrado
Te arrebento se você pular no meu sofá
[Verse 2: Kendrick Lamar]
I’ll prolly die anonymous, I’ll prolly die with promises
I’ll prolly die walkin’ back home from the candy house
I’ll prolly die because these colors are standin’ out
[Verso 2]
Provavelmente morrerei anônimo
Provavelmente morrerei com promessas
Provavelmente morrerei voltando da casa de doce
Provavelmente morrerei porque essas cores estão se destacando
[Verse 3: Kendrick Lamar]
When I was 27, I grew accustomed to more fear
Accumulated 10 times over throughout the years
My newfound life made all of me magnified
How many accolades do I need to block denial?
[Verso 3]
Quando eu tinha 27, me acostumei a ter um medo
Acumulado por 10 vezes mais ao longo dos anos
Minha vida recém descoberta fez tudo de mim aumentar
Quantos elogios eu preciso para bloquear a negação?
[Verse 4: Kendrick Lamar]
I’m talkin’ fear, fear of losin’ creativity
I’m talkin’ fear, fear of missin’ out on you and me
I’m talkin’ fear, fear of losin’ loyalty from pride
’Cause my DNA won’t let me involve in the light of God
[Verso 4]
Tô falando do medo, medo de perder a criatividade
Tô falando do medo, medo de perder você e eu
Tô falando do medo, medo de perder lealdade do orgulho
Porque meu DNA não me deixa envolver na luz de Deus)
Kendrick definitivamente está falando de medo.
Há uma linha temporal nos versos, o primeiro aos sete anos com as constantes ameaças autoritárias, ou seja, as violências. Segundo, aos dezessete anos, o sentimento da morte a espreita beirando a resignação. Terceiro, aos vinte e sete anos, sobre dinheiro, a pressão que o capital impõe pra alguém que conhece o que é ser pobre, por isso, se doar até a última gota de trabalho pra sequer haver a possibilidade de voltar a esse estado. Nota-se que são afetações estruturais, de como o sociopolítico atravessa o existencial, entretanto, Kendrick consegue complementar não “o que” vive nessa estrutura, mas, “quem” vive nessa estrutura, portanto, humanizando na máxima potência humana, assim, como quando expressa um dos medos mais humanos possíveis, o medo de ser julgado.
“At 27 years old, my biggest fear was bein’ judged”
O valor que há nessa quase-confissão de ser alguém que sente medo é grandiloquente. Kendrick ilustra detalhadamente na faixa que traz — por mais que soe contraditório — uma enorme coragem de expressar-se tão diretamente vulnerável.
No decorrer histórico da história preta, o homem preto é desumanizado de sofisticadas formas, isso não é novidade, há uma busca necessária e inumana por uma invulnerabilidade impossível de se chegar, só se chega quando deixa-se de ser humano. Hei de ser forte, hei de aguentar, hei de encarar, hei de atento, enfim, hei de não ter medo, afinal, se é convocado a ser tão preparado, duro, onde é que sobra espaço para pra se ter medo? Onde é que sobra espaço pra ser humano? Afinal, onde há o tal do “humanamente possível”, então?
Kendrick traz com toda a força o que é não se sentir forte, a meu ver, empossa o sentimento como tema e catarseia sobre o mesmo. Sentir medo é algo necessário pra existir, acolher esse medo é necessário para viver. Acolher no sentido de haver uma troca entre nós, pessoas pretas, mas, especificamente entre os homens pretos.
Muito se martela no rap — principalmente no trap — o “ser foda” pra ser mais objetivo e, de novo, compreendo também a necessidade afirmativa egóica como ferramenta de estar num mundo que ainda tenta repetir que somos subalternos. Impor é preciso, contudo, não contempla o todo. De novo, vulnerabilidade é potente, essa sensibilidade é registro de que sim, em toda essa pele há gente. Não só um guerreiro, um trabalhador, um cara foda, mas, gente.
Isso tudo é tão absurdo que temos que reivindicar até a porra do direito de ter medo.
Assim como Kendrick, eu estou falando de medo, mas não só, pois, esse medo há de ser falado, expresso, humanizado, é na troca de afetos e afetações que vive o acolhimento, tanto das paixões alegres quanto das paixões tristes. Não só o homem preto, como todas as pessoas pretas, como todas as pessoas não-brancas que são submetidas a opressão da tentativa da hegemonia branca, europeia e tudo aquilo que vem no pacote. A importância de Kendrick trazer a tona essa vulnerabilidade é tão grandiosa como quando Brown diz “Diz que homem não chora? Tá bom. Falou” na música “Jesus Chorou”, pois, há um impulsionamento da reinvindicação de ser humano como um todo.
É necessário falar sobre medo não para que se mostre as fraquezas, mas, que na compreensão ubuntu (“a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade”, segundo Desmond Tutu), num acolhimento e numa partilha, haja fôlego pra evidenciar e multiplicar a coragem, apesar dos pesares.