HOMECOMING, de Beyoncé e Sunday Service, de Kanye West: A ritualística e o conceito africano de Palavra.
Dois acontecimentos obelísticos da afro-cultura aconteceram em datas muito próximas nesse primeiro semestre de 2019, HOMECOMING, o…
Dois acontecimentos obelísticos da afro-cultura aconteceram em datas muito próximas nesse primeiro semestre de 2019, HOMECOMING, o conceito multimídia de Beyoncé, em que num documentário-álbum-show apresenta os bastidores do show acontecido em 2018 em um dos maiores festivais de música e arte do planeta — e um dos mais caros também — sendo esse o Coachella, em que os headliners já passaram por Jay-Z, Lady GaGa, Paul McCartney, Radiohead, Amy Winehouse, entre inúmeros artistas de notoriedade global e importantes para a produção de cultura e arte. Todavia, 2018 o nome do festival, ainda que com toda a sua extravagância e status, se torna Beychella, num batismo espetaculoso e glorioso que é coordenado com maestria pela primeira mulher preta a se apresentar como atração principal desde sua criação em 1999.
Mais a frente, após poucas semanas de abril de 2019, com o festival acontecendo novamente, como é comum em todos os anos, no dia 21 de abril, na exata data de páscoa, ou seja, no que, para os cristãos, significa a volta do salvador absoluto pós tortura e crucificação, acontece, no alto das montanhas do camping do evento, o que é tido como Sunday Service, projeto de Kanye West em que há uma completa nova interpretação das suas músicas, onde une o gospel, suas letras e batidas num coral enorme que traz consigo toda a catarse, energia, força e mensagem de uma igreja afro-americana, trazendo uma sinergia nunca antes vista na música como um todo.
Ambos esses acontecimentos, o espetáculo, a publicização e o aprofundamento na intimidade de Beyoncé perante um ato grandioso e a inesperada ode honrosa e contemporânea a uma das bases de afirmação dos afro-americanos, vinda do gênio e complexo Kanye West — ainda escreverei um texto sobre Kanye West, tenho minhas problemáticas com ele — a música gospel, se tornaram, literalmente, históricos em inúmeros aspectos, tanto os que constituem o evento em si, sendo um evento basicamente burguês pra rico ver e escorrer publicidade, como no aspecto de grito altíssimo da cultura preta em que o estrutura essas mesmas apresentações, gritam em preto para pretos e pretas, representatividade, potência, detalhamento, letras, discursos, dança, energia, batidas, instrumentação, na mais pura energia — quando faço uso da palavra “energia” eu digo como energia concreta, libido — ambos, junto aos que compõem esses atos, expressando de forma tão intensa e atravessando a já complexa linguagem da música, que são, a meu ver, as mais perfeitas demonstrações do conceito negro-africano de “Palavra”.
Segundo Leite (1996):
“Dentro do universo que lhe é próprio nessas sociedade, a palavra emerge como fator ligado a noção de força vital e, em seu aspecto mais primordial, tem como principal detentor o próprio preexistente. Nesse sentido, não raro, a palavra aparece como substância da vitalidade divina utilizada para a criação do mundo, confundindo-se com o chamado sopro ou fluido vital, sendo que no (ser humano) essa herança manifesta-se, em uma de suas formulações, através da respirações. O conjunto força vital/palavra/respiração é elemento constitutivo da personalidade, emergindo plenamente quando o (ser humano) o estrutura de maneira a criar a linguagem e o exterioriza através da voz.”
A gênese de toda a etimologia da “palavra” é outra, pois, o todo é outro e é admirável conseguir compreender esse sentimento tanto por eu ser um homem preto que se aproxima cada vez mais de suas raízes, como própria construção de visão de mundo. Distinta da valorização da palavra escrita ter um nível numa hierarquia de seriedade e/ou veracidade, a oralidade africana por si só, tem a proximidade de alguém que passa a “palavra” e que recebe a “palavra”. Nos valores que permeiam os valores africanos, a “palavra” permeia a força virtal, energia do todo, a ancestralidade que é ponto crucial e básico para a existência, a comunidade, a família, desenhando uma costura harmônica muito bem estruturada sobre a compreensão do ser africano.
Quando tentei absorver essa forma de ser no mundo e, portanto, mudando minha visão de mundo, assistindo a essas duas obras, não havia possibilidade que não percebesse isso, como num microcosmo tribal ou como num eloquente culto das igrejas afro-americanas, claro, com suas características atuais, mas, ainda sim, o sentimento ser atingido por outra parada. Não mais aquele “je ne sais quoi”, mas, sim a “palavra”.
A “palavra” flutua e transita por tudo que se expressa e se mostra, portanto, a “palavra” vai da fala a respiração, mas não só, a natureza fala, expressa, pelo farfalhar das folhas, pelo correr dos rios, pelo bater no couro dos tambores.
Em HOMECOMING, há uma coreografia tão complexa de quase duas horas que é impecável e o palco completamente tomado por mulheres pretas em movimentação constante, vivida, intensa, gritante, numa mescla de danças mais pops, acompanhada por movimentos e formações que notoriamente são tribais, a própria Beyoncé explicita isso em meio as partes que ela narra no filme, que sempre fora um objetivo resgatar as raízes, tocar a ancestralidade e mostrar o novo, um palco repleto de jovens mulheres pretas dançarinas e músicas num geral e, como divina que só, atinge com perfeição.
Já Sunday Service, através de uma transmissão com apenas um circulo imersivo no centro da tela, conta tudo de outra forma. Sunday Service é Kanye West, de fato, mas a simbologia ali tida, era uma celebração puramente preta, uma grande celebração, do gospel, da igreja afro-americana que frente a sociedade racista e escandalosa que se mostra os Estados Unidos, há de se convir que o conceito de Deus é um ótimo apoio, independente da existência do mesmo ou não. Os círculos conectados por várias pessoas em corais de completa harmonia, onde quase dá para se sentir o cheiro da troca de energias e potências naquelas duas horas decorridas, onde as palavras dos inúmeros pregadores em meio a essa conglomeração espantosa de homens e mulheres negras numa celebração dos cernes constituintes do ser negro, do ser africano, do ser afro-diaspórico, do ser que tem em seu enraizado toda essa ancestralidade no escuro da pele.
A sensação de perceber um modus operandi quase ritualístico — assim como aqui no Brasil, essa sensação é muito expressa em BaianaSystem e Olodum — onde há uma forma que demonstra uma fabulosa fluidez e, analisando como uma experiência, de fato, ritualística, faria sentido pois, o divino ou etéreo — com as óbvias distinções completas do ocidente — que complementa e contempla o todo, principalmente no sentido de energia vital, na confluência com os antepassados, a palavra, a natureza, então, ainda mais em tais contemporâneas leituras, se mostra que as raízes, de fato, são o que alimentam todo o restante.
Referências.
Leite, F. (1996). Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. Revista do Centro de Estudos Africanos. 19(1). p. 103–118.