Masculinidade, expressão e RuPaul’s Drag Race: “Nós todos nascemos nus e o resto é drag”.
Tenho a percepção que textos iniciam fazendo algum tipo de disclaimer ganham um tom desconfiado no restante da leitura, há de se ter uma…
Tenho a percepção que textos iniciam fazendo algum tipo de disclaimer ganham um tom desconfiado no restante da leitura, há de se ter uma boa noção da sua escrita para que o texto não vire um grande “Eu acho tal coisa, MAS…”, enfim, todavia, na reflexão que hei de fazer no decorrer de todo esse ensaio, a meu ver, apenas soma e não deixa instável.
A voz palavreada aqui vem de um homem negro cisgênero e heterossexual. Ou seja, há símbolos coniventes que fazem que essas características me deem espectros muito taxativos. São símbolos representados para além das características pele, gênero ou sexualidade, são suas compreensões imediatas, hão, nessas mesmas palavras, o que as fazem ter seus devidos pesos sociais, sexuais, existenciais, comportamentais, performáticos, afirmativos e tudo que constitui um ser individual.
RuPaul’s Drag Race está na sua décima primeira temporada. Já são onze anos, isso quer dizer que o programa iniciou em 2008. Estando em 2019, vivendo no Brasil, principalmente, é notório que coisa pra caralho mudou em relação a muitas coisas, não tantas coisas pra melhor e muitas coisas pra pior, pensando num sentido macro e principalmente político, não é mesmo? No decorrer dessa uma década, a realidade universal, pelo menos ocidental, acompanhou um dinâmica em que o status quo não mudou, porém, meio que todo mundo percebeu que estava tudo um tanto quebrado e em crise, os seres humanos se mostraram um tanto quanto mais animalescos e selváticos do que se pensava que seriam na pós-modernidade, a soltura dos preconceitos sem véus, as ofensas fáceis, as mortes fáceis. Vocês todos e todas sabem do que estou falando, entretanto, em meio a esse momento de balas, sangue e chorume, as drag queens, desde os tempos shakespearianos — literalmente- mostram completamente contrário ao que foi dito anterior, onde é, indubitavelmente revolucionário, homens se expressando com feminilidade, arte, estética, estravaganza e paus aquendados.
Tenho plena noção das problemáticas do programa, ainda mais por ser um tipo de reality show que, notoriamente, tem uma dose de desespero pelo entretenimento que as vezes beira ou chega no absurdo, assim como boa parte das mídias televisivas. Seu funcionamento que em alguns ou até vários momentos no decorrer das temporadas se mostra, através dos/das participantes, gordofóbico, transfóbico, racista e também misógino, além de dar uma noção completa de competição entre as/os participantes, criando conflitos em entre seres que terão um aspecto simbólico grandioso em relação a influência sobre uma comunidade LGBTQI+ e, principalmente, na comunidade de drag queens, ou seja, minorias são sinônimos de conflitos por serem majoritariamente oprimidas, ainda mais, se tratando de um microcultura dentro dessa minoria, definitivamente não é um lugar para se ter mais conflitos, principalmente internos. Todavia, da mesma forma que RuPaul’s tem suas feridas, RuPaul’s tem suas glórias, por isso é tão complexo.
Ando fascinado a meses por RuPaul’s e o quanto mais eu penso sobre o conceito de drag, mais eu fico fascinado. RuPaul’s é facilmente a forma mais acessível — ainda que não seja tanto — e massiva de conseguir enxergar essa cultura e, apesar dos pesares, uma forma que destrincha inúmeros aspectos do que é essa expressão e, se tratando de expressão, eu arrisco dizer que expressar-se drag é uma das maiores formas de arte e expressão que já aproximei minha compreensão, pelo menos pensando em seres únicos.
Conheço o programa faz um tempo, mas, me negava a assistir por conta do que me diziam sobre competição e colocar pessoas umas contra as outras, ou pelo menos usava isso como justificativa para negar algo que tinha a possibilidade de afetar minha masculinidade frágil. De fato, eu não sei dizer se havia algum aspecto preconceituoso, mas, ainda mais tendo o viés de um graduando em psicologia, provavelmente sim, havia algo do tipo, talvez não em sua totalidade, mas pelo menos partes dessa negação eu apostaria que teria haver sim. Entretanto, agora, mais maduro existencialmente, psicologicamente e socialmente, acabei por começar a ver aleatoriamente e simplesmente me ver diante de uma paixão por um novo braço artístico, de completa apreciação, nada diferente do que ir a um museu, um teatro ou uma exposição de obras, afinal, pouco se sabe sobre o que é arte ou qual o papel da mesma, porém, é sabido que uma das certezas sobre a mesma é que gera afetação e eu fui afetado e agradeço plenamente por essa afetação.
O símbolo reduzido por si só tem suas problemáticas e justificativas. Homens se vestindo de mulher. Todavia, não tem sua totalidade.
As drag queens abarcam um aglomerado glorioso de inúmeros aspectos de expressão que se conversam de forma em que não haveria palavra melhor do que posto em extravagância, onde essa mesma expressão usufrui de moda, dança, discurso, música, teatro, adaptação, estética e perspicácia. Faz usufruto do exagero lapidando-o o bastante para se tornar extravagância e vez ou outra, transforma o absurdismo num cotidiano. A redução de superficialidade na didática falha e reduzida em “homens se vestindo de mulher” além de tudo, é completamente injusta. Há muito mais, tanto mais que essa sentença oprimida se perde na facilmente no horizonte em se ver diante de drag queens desfilando ou cantando ou simplesmente desfilando numa passarela.
Um ser que se denomina drag queen é imediatamente e eloquentemente político. Não há como frente uma sociedade ocidental completamente machista e homofóbica, um ser tomar um símbolo e extravasar ele para que seja uma contracultura, um ataque e uma resistência é muita coisa, muita mesmo.
Aquendar a neca ou, em termos mais explícitos, esconder o pau tem uma simbologia gritante. Faz parte do ser que o pau não fique aparente, faz parte da performance da queen, faz parte da performance do ser que é uma explosão expressiva e essa expressão é incompleta se o pau estiver ali. Não, a ilusão tem de ser feita por completo para que não seja uma ilusão e sim uma verdade. O falo precisa deixar de existir, pelo menos naquele momento. O ato consciente e de completude em aquendar a neca é, também, um dos maiores símbolos que eu pude compreender em toda a vida. É preciso que falte aquela parte para que seja acompletude. Esconder o pau traz consigo toda a metáfora possível que destrói as bases da masculinidade e até de teorias incisivas, como a psicanalise. O instrumento de poder, o tal falo, o símbolo do falo, a concretude daquilo que baseou-se milhares de anos de criação de sociedade não tem lugar nessa existência e essa existência consigo ser exagerada a ponto de fazer com que a falta seja concreta. Não é sobre esse poder, é sobre outro poder. É aniquilar um símbolo expressivo que é deturpado e que oprime, para que o símbolo expressivo seja absolutamente todo o restante, todo o corpo, toda a expressão facial, toda a personalidade, todo o andar, todo o cabelo, toda a beleza, absolutamente tudo. É como a queda de um ditador e esse ditador é um totem.
Quanto mais me aproximava desse microcosmo cultural, mais havia a afetação, não só por tudo que foi citado, mas por ver pessoas completamente humanas. O programa está longe de ser criatividade e desfiles. O que há por trás e o que há na frente das drags são uma outra interpretação sobre passado, presente e futuro, em que é concretizado em performances existenciais que vivem num mesmo ser e isso é tão surreal que, de fato, eu pensava estar vendo mágica em sua maioria, pois, o deslumbre faz parte da magia e, com certeza, em suas diversas formas, é atingido com maestria brilhante.
Eu me vi, naquele momento, confortável mais rápido do que eu pude e, desse conforto, deixando-me não só afetar, mas absorver o que me cabia, assim como maioria de expressões artísticas, mas, dessa vez, lidava com minha masculinidade e, inevitavelmente, com a minha sexualidade também, afinal, as imposições sociais são espinhos na garganta que demoram a descer e, confesso que independente do quão ampla for a desconstrução, esses mesmos espinhos vão demorar alguns séculos para serem digeridos, isso se forem. Eu achava aquilo tão bonito e a intimidade que se cria é notória também, pois, grande parte do programa se passa dentro de uma sala de trabalho onde são mostradas através e além do glamour drag, são mostradas as angústias, os risos, as gírias internas, o cuidado, a desavença e isso aproxima muito daquele que assiste, junto as frases memoráveis das diversas participantes e da própria RuPaul que me encantou com uma sagacidade, oralidade e habilidade discursiva que é invejável, na irmandade e em toda a forma que as relações se formavam. Era fabuloso como realmente é para parecer ser. Acho que ao final das contas, me deixei absorver pelas afetações que foram dadas diante as minhas afetações como homem, conseguindo quase que como obter um alvará para também ser expressivo, não como uma drag, mas compreender que naqueles seres tinham expressões que é provável que eu não fosse encontrar tão facilmente no meu meio e arriscaria dizer que na maioria dos meios.
Meu olhar sobre como eu me olhava ganhou mais camadas, hora dessas eu peguei olhando no espelho e analisando detalhes do meu próprio corpo que eu não para analisar, fazendo inúmeras expressões para que eu visse como elas ficariam, a moda já convive comigo a um tempo, ainda que de forma superficialíssima, mas os detalhes foram atentados também, em como eu me expressaria, afinal, aquilo é o que cobre meu corpo inteiro, que, ao meu ver, é a vestimenta primária do ser e se eu tenho que cobri-la pela pressão moral e ética da sociedade, que expresse algo que seja o mais próximo que eu poderia expressar se estivesse completamente nu e isso inclui afrouxar ainda mais as linhas entre a imbecilidade de divisão entre roupas masculinas e femininas, me aproximar não só de uma realidade que não é minha, mas me aproximar do seu próprio exagero e sátira frente a sociedade e isso é incrível. Perceber que a vergonha ou a timidez tem opostos que vão além de só a extroversão e isso alivia um pouco a tensão de ambos os sentimentos e mesmo o tal conflito que os homens provavelmente se amedrontam dentro de suas calças de sequer balancearem sexualidade. “Oh, meu deus, minha sexualidade tão bruta que se ameaçada vai se desestabilizar e vou estar cavalgando no colo de homens grandes, sarados e suados, oh meu deus”. Pois é, eu não estou. Acho que com o devido conforto, acho inevitável que não toque nesse sentido, afinal, há uma vigência estética e sobre beleza que percorre todo o cerne do programa, todavia, foi muito interessante se perceber atraído por um mesmo ser em uma performance e em outra performance completamente desatraído. Performances essas do feminino e performances do masculino. Claro que não só baseado em questões físicas, obviamente, mas perceber o quanto a feminilidade pode ser incrível no sentido de me atrair sexualmente como também absorvida para o meu próprio ser e fazer me sentir não só mais homem e menos como o estereótipo sujo que se criou sobre o homem-hetero-cis. Não sei até onde essa atração por drags montadas iria, mas só de ela existir, isso é grandiosamente expansivo e interessante, tanto em como eu vejo o feminino, o masculino, a mulher, o homem, etc.
A frase “We all born naked and the rest is drag” é uma verdade incrível, pois, tudo que performado só por existir, não passa de uma falta de exacerbação e grito nosso. As drag queens mostram que da existência dá pra se sugar até o talo. Que o exagero é existencialmente extravagante. Que a verdade pode nascer sim de uma ilusão. E tudo isso só prova que nós, os normalopatas, sabemos existir pouco.
Now… Sashay away.