A série de TEXTOS DE RECESSO, em que, pelo mês de janeiro inteiro - o mês mais ressacado dos meses - eu postarei textos meus que são de anos anteriores e que, à meu ver, valem a pena serem resgatados. Pode botar fé que são ótimos textos, tá?
Enfim, por toda o mês de janeiro, semana a semana, reeditarei tais textos e, como agora, eu tenho um público novo e, consequentemente, maior aqui na newsletter, acho válido reatualizar e apresentar expressões que já tive.
Caso me bata algo muito forte, um arremate de inspiração, eu postarei texto novo, caso não, só mês que vem.
Fé pra todes e boa leitura. Aproveitem.
Bom, é de se iniciar tirando o apocalipse da sala.
É sabido por todos — não aceito por alguns imbecis — que, agora, nesse presente que vivemos, é tempo de uma reclusão bizarra, o isolamento, a distância física, umas doses de desespero. É instituído um modo de viver, o de só ficar em casa, que é o incomum. Longe de ser o “sentimento de uma pessoa caseira”, é de voluntariamente em prol da vida de pessoas do mundo todo e a sua, que fique em casa. Dentro de casa e fora de casa são duas formas muito diferentes de viver, agora.
Mesmo assim, hei a vida de continuar vivendo e vivida ainda.
Relacionamentos muito mais próximos, estar sozinho de forma mais veemente, famílias distantes e agora próximas. Algumas coisas estão num estado incomum, essa é a parada. Tenho dito muito nas sessões terapêuticas que parece estamos sob estado de uma “hipersobriedade”, concentrados muito na gente, nos entreter com nós mesmos, viver o constante caminhar entre pensar sobre surtar e de nos atenuar desse pensamento, realidade demais pra controlar. A dinâmica é outra.
Minha ex-terapeuta n'algum momento me ensinou o termo "Ensimesmar". Eu chamava de "hipersobriedade", mas, readéquo esse termo para o que ela me ensinou puramente pela poética. Esse movimento intra, que vai nos encurvando tanto que em algum momento, percebemos que estamos dentro da gente. Esse movimento pode até ser bom, mas, é muito caro tendo conhecimento de que temos que ter uma relação com o mundo. Podemos tirar a nossa vida desse mundo, mas, não o mundo de nossa vida.
Dito sobre as condições (já passadas. que bom), restaurou essa vontade de expressão que matura faz anos n’algum canto da minha cabeça.
A fotografia sempre foi algo intimista, fluido, introspectivo e imaginativo pra mim, mas, também solitária.
Tentar fotografar o tédio ou o que nasce do tédio, do ócio, da epifania. Depende muito.
Uma câmera é um objeto disparador, isso coage a gente. Nesses momentos de solidão, havia eu, uma câmera e uma casa. Uma hora as imagens da casa cansam. A vontade de tentar captar ou criar ainda existe, portanto, lembro que tenho eu.
Dessa lembrança que há uma proposta de mim pra mim, corpo de mim mesmo que é máquina potente de criação.
Re-percebia que naquele contexto, naquele olhar, naquele momento, eu poderia desenhar a forma do meu corpo, falar sem palavra, de mim pra mim. De mim para o meu desejo. O Mundo pode até vir, mas, nesse exato momento, vem depois de mim.
Naquele exato momento, eu ganho do mundo.
Meu corpo é minha espada e meu escudo naquele momento.
Me encanta o autorretrato desde quando aprendi sobre a possibilidade da aproximação da magia.
Essa aproximação quase-mágica vem do quão perto pode-se chegar de pôr seu próprio olhar no olho da câmera, na tentativa de se aproximar da sapiência de como é se ver pelo outro, mas, sem a necessidade do outro estar ali, pelo menos em corpo.
O autorretrato, a primeiro momento, te traga para uma visão de reflexo. De se ver, de olhar aquele corpo já feito e, num reducionismo habitual e deslumbrado, a potência de gênese é esquecida. A potência de criação. A compreensão de que somos, inevitavelmente, criaturas criadoras.
A possibilidade de uma pintura sem tintas, um desenho sem grafite, uma música sem som, da direção de um ser só. Da invenção, da criação, da possível máxima da autenticidade. Essa é a magia.
Da impossibilidade de ser a sombra do próprio corpo.
Corpo nunca fora uma palavra tão usada em tantas nuances e, hoje, há quase um sentimento de ansiedade a se falar de corpo. Nos padrões, nas mudanças, no funcionamento, na pele, na fisiologia, na arte. Poder tentar experienciar usufruir do que constitui o ser humano, não tendo um corpo, mas, sim, sendo o corpo, com toda a expansão que se pode, dá a possibilidade - até ilusória, várias vezes - de ver um outro reflexo colorido refletido no prisma da vida de que: se pode, sim, construir outro modo ou vários modos de estar no mundo.
Um autorretrato tem uma filosofia única, egóica e narcísica, que não consigo dizer exatamente se é certa ou errada, isso se for possível atribuir tais tipos de conceito em algo tão humano, entretanto, há de se confessar comigo que é deveras interessante. O conceito de “eu” é interessante. Assustador, mas interessante.
Não à toa, “selfie” foi a palavra escolhida do ano de 2013.
Em momento nenhum citei aqui a palavra "beleza". Não é sobre beleza porquê não há necessidade de beleza, há necessidade de criação de beleza, no sentido mais amplo possível para um conceito.
Veja, eu compreendo a estranheza, onde permeia o bizarro — pelo menos a meu caso — de sentir comigo mesmo o sentimento curioso do tal “vale da estranheza”. É um movimento de atravessar o ridículo da própria plateia criada. Um movimento de autonomia da aceitação do querer se conhecer.
Há alívios no nosso corpo que não estão marcados em nosso mapa.
Esse é um manifesto a experimentação de si próprio.
Experimente a si próprio.