O desvelamento do mundo: Racionais MC’s, Vida Loka pt. 1
Bom, então, deixa eu fazer uma introdução: Esse texto e análise é basicamente uma parte do meu TCC que está sendo escrito pra ser…
Bom, então, deixa eu fazer uma introdução: Esse texto e análise é basicamente uma parte do meu TCC que está sendo escrito pra ser apresentado no meio desse ano, portanto, é como se isso fosse um tipo de exercício pra tal, sabe? O título do trampo é “O desvelamento do mundo “Vida Loka” através das músicas do grupo de rap Racionais MCs.” que vai ser através de uma análise de conteúdo com o viés fenomenológico para que haja a tentativa de compreender melhor o Mundo “Vida Loka”, o que constitui esse mundo marginalizado e, literalmente, periférico no sentido existencial, como funcionam, diante de microcosmo, o mosaico que forma a subjetivação do ser “Vida Loka”, leis éticas, morais, gênese de sentimentos vigentes destoantes do que é tido como comum — tal comum-normal baseado no que se enxerga como classe média — enfim… E, ninguém melhor pra dar o escopo desse Mundo do Vida Loka, se não Racionais MCs, que eternizou o termo Vida Loka.
Segundo Tourinho (2009):
Trata-se do mundo que nos cerca, constituído de entes mundanos, frente aos quais podemos tomar atitudes variadas, quer nos ocupemos com eles, quer não. Vivenciamos, portanto, a todo instante, a chamada “Tese do Mundo”. Mas, se além da vivência dessa tese, fazemos uso dela, passamos, então, a exercer o que Husserl chamou de “atitude natural”. Na atitude natural, atribuo a mim um corpo em meio a outros corpos e me insiro no mundo através da experiência sensível.
De qualquer forma, eu posto aqui agora minhas reflexões tidas nesse destrinchar da música e, como dá pra ver, tá ficando muito grande mesmo e provavelmente eu vou ter que lapidar o texto até o final, então, vão haver partes que seriam, provavelmente, seriam só deletadas. Ao invés disso, vou deixar os escritos aqui, pois, acho que faz mais sentido do que simplesmente o esfarelar de tais reflexões. Isso é o esqueleto.
É isso, é nóis.
[Intro]
Mano Brown: Vagabunda… Queria atacar do malucão, usou meu nome. O pipoca abraçou, foi na porta da minha casa lá, botou pânico em todo mundo três horas da tarde, eu não tava lá. Vai vendo… // Negredo: Mas aí, Brown, ó. Tem uns tipo de mulher aí, truta, que não dá nem pra comentar… // Mano Brown: E eu nem sei quem é os maluco, isso que é foda… // Edi Rock: Ih, vamo atrás desses pipoca aí, e já era // Mano Brown: Ir atrás de quem? E aonde? Sei nem quem é, mano. Mano, não devo, não temo, dá meu copo que já era
A introdução demonstra um diálogo entre mais de dois personagens, sem canto, sendo, de fato, uma conversa. Discutem entre si sobre um conflito que envolve o personagem de Mano Brown, em que ele dá a sua versão da história, história essa que se caracteriza por acusações, mentiras e possíveis adultérios. Há um descontentamento óbvio no tom da conversa, demonstrando sentimentos de raiva e agressividade, apesar do apaziguar ao término do diálogo. É notório, também, o sentimento de objetificação da mulher no teor da conversa, principalmente na fala de Negredo, onde sua fala induz um tipo de culpa ao ser-mulher, como algo intrínseco da personagem citada, ou seja, sendo uma inclinação anterior ao próprio ser completo da personagem, estereotipando-a uma noção, literalmente, machista do ser-mulher, além, da forma redutiva a individualidade existencial da personagem.
[Interlúdio]
Abraão: E aí, bandido mau, como é que é, meu parceiro? // Mano Brown: E aí, Abraão. Firmão, truta? // Abraão: Firmeza total, ó Brown. E a quebrada aí, irmão? // Mano Brown: Tá a pampa. Aí, fiquei sabendo do seu pai, aí… lamentável, truta, mó sentimento mesmo, hein mano // Abraão: Vai vendo, Brown, meu pai morreu, nem deixaram eu ir no enterro do meu coroa, irmão // Mano Brown: Cê é louco… Cê tava onde na hora, mano? // Abraão: Eu tava batendo uma bola, meu. Fiquei na mó neurose, irmão // Mano Brown: Aí foram te avisar? // Abraão: Aí vieram me avisar. Mas tá firmão, Brown, tô firmão… Logo mais eu tô aí na quebrada com vocês aí // Mano Brown: É quente. Na rua também não tá fácil não, morô, truta… Uns juntando inimigo, outros juntando dinheiro… Sempre tem um pra testar sua fé, mas tá ligado… Sempre tem um corre a mais pra fazer. Aí, mano, liga… liga nóis aí qualquer coisa, cê tá ligado, mano. É lado a lado nóis até o fim, morô irmão? // Abraão: Tô ligado
Inicia-se então outro diálogo, agora, uma ligação entre o personagem de Mano Brown e Abraão que, apesar de não deixar explícito, tudo indica estar encarcerado e essa ligação demonstra todo um tipo de irmandade entre os dois. Importância de ambas as vias. Há uma constante preocupação tanto individual, quanto coletiva. Denota uma relação que cria um tipo de imagem que ilustra o contexto, daquele que é marginalizado duas vezes, por ser favelado e, no caso de Abraão, também como criminoso. Contextualiza o mundo que vive, mostrando dois ambientes cruciais. A rua e a cadeia. Contextos agressivos e cotidianos, todavia, o sentimento na fala de ambos, ainda que nessa situação complexa, que envolve crime, luto e preocupação, ainda há um ar que paira na conversa de irmandade e afeto entre ambos.
[Verso 1: Mano Brown]
Fé em Deus que Ele é Justo, ei irmão, nunca se esqueça // Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça // Truta, onde estiver, seja lá como for // Tenha fé porque até no lixão nasce flor // Ore por nós, pastor, lembra da gente // No culto dessa noite, firmão, segue quente // Admiro os crente, dá licença aqui // Mó função, mó tabela, ho, desculpa aí
Enfim, a música é iniciada e em sua primeira frase há uma bravata sobre Deus, de confiança, crença e segue em um discurso sobre religiosidade, especificamente a evangélica, onde há o elemento de fé muito forte, firmando o símbolo que Deus tem, de um apoio certeiro. A atmosfera religiosa cristã permeia as classes baixas, onde, em meados dos anos noventa, das expansões das periferias brasileiras, houve, também, um aumento muito grande das igrejas evangélicas, em que, tratando-se do contexto vivido — ou seja, o Mundo — em que isso se mostra consequência quando se tem uma existência reprimida pelas condições de sobrevivência, onde o meio pobre, violento e insalubre, não proporciona muitas formas de cuidado tanto físico quanto mental e, uma instituição que consegue, de uma forma ou de outra, amenizar angústias, tendo, de fato, um efeito terapêutico, em que a potência do sentimento de acolhimento e identificação é notória.
Segundo Santos (2004):
As igrejas neopentecostais tornam-se às vezes o único lugar que garante essa convivência e que sugere a adaptação ao sistema de trabalho e o fortalecimento da autonomia de seu mundo e de sua liberdade. Nas igrejas neopentecostais, as classes oprimidas perpetuam seu espírito comunitário a troco de circunscrever um sentido e significado para o seu trabalho para além de sua inquieta repetição. A história de um crente pode começar com o álcool, o vício em drogas ou a decepção em relação a seus projetos, e pode terminar com um maior controle sobre os afetos graças à forma com a que os cultos aliam estratégias de descarga emocional, através de cânticos e expressões catárticas, ao sentido de transcendência que, por sua vez, está vinculado à obrigação do dízimo e da oferta. Tal lógica mantém essas igrejas milionárias, capazes de fazer fortunas imensuráveis e influir de forma decisiva na política do país através da manipulação dos meios de comunicação. (pg. 87–88)
Eu me sinto às vezes meio, pá, inseguro // que nem um vira-lata sem fé no futuro
Logo em seguida, ainda no mesmo verso, apesar de começar afirmando fé com firmeza, demonstra fragilidade e insegurança diante do que foi expressado, ainda que em uma curta frase. Todavia, não simplória. A mudança de tom no discurso é vista, passada de uma afirmação impositiva, para uma afirmação de retração, mostrando também uma confusão. É essencial analisar não só de onde vem, como também de quem vem, sendo um homem negro, periférico e do rap, contextos esses que fazem da masculinidade tóxica, tal qual condena sinais quaisquer sinais de fragilidade das emoções, ainda mais excruciantes.
Vem alguém lá. Quem é quem, quem será? meu bom // Dá meu brinquedo de furar moletom // Porque os bico que me vê com os truta na balada // Tenta ver, quer saber de mim, não vê nada // Porque a confiança é uma mulher ingrata // Que te beija, e te abraça, te rouba e te mata
Há um sentimento de alerta cotidiano nos contextos periféricos brasileiros, em que diversas formas de crime permeiam a microatmosfera em detrimento consequencial do contexto, contexto esse que exige uma constante atenção. A desconfiança é expressa na continuidade do verso, nas duas primeiras frases, a desconfiança não só gera tensão, gera preparação para que se sobreviva, por isso o “brinquedo de furar moletom”, uma arma. O personagem dá características a confiança para falar sobre desconfiança e corroborar com esse sentimento de alerta.
Desacreditar? Nem pensar, só naquela // Se uma mosca ameaçar me catar piso nela
Desconfiar, apesar do som parecido das palavras, traz outra linha, respondendo a própria pergunta. Desconfiar, se manter atento, sim. Desacreditar, nem pensar. E conversa bem com a parte explicitada antes, como num resumo dito pelo personagem. Mostra imposição e firmeza, apesar dos pesares contextuais e vivenciados.
O bico deu mó guela, ó // Pique bandidão foi em casa na missão: Me trombar na Cohab // De camisa larga, vai saber, Deus que sabe // Qual é a maldade comigo, inimigo no migué // Tocou a campainha “Plim” pra tramar meu fim // Dois maluco armado sim, um isqueiro e um estopim // Ponto pra chamar minha preta pra falar // Que eu comi a mina dele, rá, se ela tava lá // Vadia, mentirosa, nunca vi, deu mó fáia // Espírito do mal, cão de buceta e saia // Talarico nunca fui, é o seguinte // Ando certo pelo certo, como 10 e 10 é 20 // E já pensou, doido, e se eu tô com o meu filho // No sofá, de vacilo, desarmado, era aquilo // Sem culpa e sem chance, nem pra abrir a boca // Ia nessa sem saber, (pro cê vêr), // Vida Loka!
Aqui, ao término do verso, logo antes da segunda parte do interlúdio, é dito a palavra homônima a música. “Vida Loka” e o personagem, ao contar uma rápida situação, que dá o tom narrativo da música, acontecida com ele, traça um ar intenso e caótico mas ao mesmo tempo um ar cotidiano, não só pela forma como ela é contada, mas também, pela forma como é contada, falada, usufruindo da forma que se fala dentro das culturas periféricas, onde o dialeto toma forma distinta do que é considerado comum no linguajar, tomando esse “normal” em um prisma que tem a base da classe média, tornando incomum ou anormal outras formas faladas, portanto, vindo de uma base contextual a própria gênese da fala nas periferias, torna-se também marginal aos olhos do status quo, estereotipando como ignorância.
[Interlúdio]
Abraão: E aí, Brown, nóis tá aqui dentro, mas demorô, truta, liga nóis, irmão // Mano Brown: Não, truta, aí, jamais vou levar problema pro cês. Nóis resolve na rua, e rapidinho também. Mas aí, nem esquenta… Aí, e aquele jogo lá do final do ano que cê falou? // Abraão: Então, truta, demorô ó. No final do ano nós vamo marcar aquele jogo lá. Vem você, o Blue, os cara do Racionais tudo aí, morô, meu? Visita aqui é sagrada, safado não atravessa não, morô?
De volta ao interlúdio, agora em tom de despedida, a ligação entre o personagem Abraão e o personagem de Mano Brown, que continuam a conversa que estavam tendo na parte anterior, onde o teor de preocupação, irmandade e comunidade se mantém até a o fim da conversa, beira o aspecto tribal
[Verso 2: Mano Brown]
Mas na rua não é não. Até jack, tem quem passe um pano // Impostor, pé de breque, passa por malandro // A inveja existe, e a cada 10, 5 é na maldade // A mãe dos pecado capital é a vaidade // Mas se é para resolver, se envolver, vai meu nome // Eu vou fazer o quê, se cadeia é pra homem? // Malandrão? Eu não, ninguém é bobo // Se quer guerra, terá; se quer paz, quero em dobro // Mas verme é verme, é o que é // Rastejando no chão, sempre embaixo do pé // E fala uma, duas vez, se marcar até três // Na quarta, xeque-mate que nem no xadrez
Inicia o segundo verso falando sobre a rua. A rua tendo um valor simbólico muito mais presente no cotidiano periférico, cotidiano no sentido de ser mais constante e intensa, por isso as citações de diversos tipos de personagens imorais, não necessariamente criminosos, mas que são mais comuns no meio, também, no sentido de julgamento, tendo a própria “lei da rua”, tantas vezes citada no rap. Ou seja, o modus operandi desse contexto tem sua própria forma de se desenhar, diferente do status quo. Destaca principalmente a vaidade, essa vaidade vem acompanhada dum sentimento de poder e individualismo, o que vai de encontro contrário com o sentimento de comunidade passado nas sutilezas da música até agora e, justamente por viver nesse contexto, com tais personagens constantes e leis que forçam a adaptação, fala sobre a vontade da paz, mas também o quão ordinário e banal é o sentimento de estar em um ambiente de guerra, tais quais as periferias, que são negligenciados pelo estado, usufruindo de termos de imposição e agressividade, pois, em um ambiente selvático, há de se ter selvageria.
Eu sou guerreiro do rap, e sempre em alta voltagem // Um por um, Deus por nós, tô aqui de passagem // Vida Loka! Eu não tenho dom pra vítima // Justiça e liberdade, a causa é legítima // Meu rap faz o cântico dos louco e dos romântico // Vou pôr um sorriso de criança onde for // Pros parceiros, tenho a oferecer minha presença // Talvez até confusa, mas real e intensa // Meu melhor Marvin Gaye, sabadão na marginal // O que será, será, é nóis, vamo até o final // Liga eu, liga nós, onde preciso for // No Paraíso ou no Dia do Juízo, pastor // E liga eu e os irmão, é o ponto que eu peço // Favela Fundão, imortal nos meus versos // Vida Loka!
O final do verso. Mano Brown se mantém em seu discurso e, de novo, se afirma, se impõe e volta a repetir o termo “Vida Loka”, agora com exclamação, demonstra um suprassumo do que a cultura hip-hop tenta expressar e mesmo nesse discurso forte e afirmativo, reconhece suas confusões e intensidades, mas mantém a presença, nesse mundo e contexto que exprimem e exigem tanto da existência, numa dificuldade evidente, ainda sim, mantém o senso de comunidade e irmandade para com aqueles comuns a ele, os negros, os periféricos, os pobres, aqueles que vivem a “Vida Loka”.
O visto que os temas, no decorrer da canção como um todo permeiam relacionamentos, machismo, crime, cadeia, parceria/irmandade, religião, Deus, insegurança, fragilidade, esperança, desconfiança, inveja, fortitude, imposição, afirmação, violência, conflito, vaidade. Explicitados partes que permeiam o Mundo Vida Loka, onde, apesar de serem características imaginadas numa questão macro — “isso existe em qualquer Mundo”- e sim, porém, a gênese, a afetação, a constância, intensidade e afins tem formas completamente distintas da existir.
LEIA TAMBÉM: O DESVELAMENTO DO MUNDO: RACIONAIS MC’S, VIDA LOKA PT. 2
Referências.
Santos, G. A. O. (2018). Terapia existencial da libertação: Ensaios introdutórios (1a ed.) Porto Alegre. Editora Fi.
Tourinho, C. D. C. (2009). A consciência e o mundo: O Projeto da fenomenologia transcendetal de Edmund Husserl. Revista da Abordagem Gestáltica. 15(2), p. 93–98.