outros diários da peste: "você está preparado pra quando a alegria chegar?"
lembrei que não esqueci, eles tão no final do livro, mas, eu tinha esquecido e agora vou postar os três.
Primeiro, pra quem não sabe eu tenho um livro publicado que tá aqui, ó: link do livro do matheuzin.
Então, esse livro começa a nascer - sem saber que ou se nasceria - no auge da pandemia, meados de abril, maio de 2020, aquela época que tava todo mundo completamente perdido, aterrorizado, paranóico, solitário e enlouquecido no pior do sentidos possíveis. Numa dessas buscas do que fazer com o isolamento social eu me propus a escrever um diário de fluxos de consciência e, bom, diário, como a própria palavra diz, é dia-a-dia e, claro, falhei em escrever todos os dias - não sirvo pra fazer nada todos os dias como dá pra ver na periodicidade dessa própria newsletter, nem semana a semana eu tô conseguindo, porra - mas, ao abandonar o diário, foquei em passar digitalizar os textos, revisar, editar, ver como é que publicaria, enfim, etc. e, nesse corre todo, eu simplesmente esqueci de colocar os três primeiros textos que deram o estalo do livro e, na versão final, eles simplesmente não foram e eu gosto bastante deles, portanto, colocarei aqui, pois, acho que não valem só pro contexto da pandemia, pelo contrário, portanto, aproveitem.
28/05. Fluxos de consciência dentro do ano de 2020. O ano da pandemia.
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Ameaço começar a escrever, mas, ali, naquele segundo onde um ato se torna outro ato, desvio minhas mãos do teclado e, na curva que meus dedos sabem fazer, pego a caneca, levo a boca, sinto o gosto insuficientemente adocicado do chá. Tenho o hábito de quebrar a naturalidade do movimento para cozinhar um pouquinho mais o ato em si. Vez penso que pode ser medo, outra vez penso que é cuidado. Não tenho resposta. Percebo que tenho mania, também, de que, para simbolizar iniciei a escrita, descrevo o lugar, acho que quero ser criador da atmosfera, do clima. Não engenheiro, arquiteto, concreto demais. Quero ser Deus da aura, da vibe, daquele que atravessa outra tipo de linguagem pra além da oral, escrita, seja lá qual for. Um Deus marginal, marginal alado, pele preta e muito swing.
Tenho me lembrado bastante de sonhar. Comumente não consigo lembrar dos sonhos, mas consigo lembrar de sonhar. Fantasiar com a parte que a fantasia é a realidade e eu não tenho que, necessariamente, pagar pra isso. Num piscar de olhos, num estalar de dedos, num sopro que sopra a poeira, a capacidade de sonhar denota que a potência existe e é força motriz. O sonho é a ilustração mais artística que a potência se veste e é importante não esquecer disso. Não só não esquecer, mas, lembrar.
Hoje fui docemente tocado, como quem cores amarelas e alaranjadas, num fundo branco, por Matilde Campilho e seu português de Portugal encariocado que me faz esquecer por alguns segundos a colonização e todas as desgraças que esse antigo império nos pusera. Nesse falado dramático que ela sabe bem fazer, me disse, em seu poema “uma conversa italiana” que um amigo seu, numa abstração proposital pela poética, diz está preparada para chegada a alegria. Fazem dois meses da publicação do vídeo desse poema e, também, pelo cenário que pinta no sotaque, fala desse irremediável isolamento em detrimento da pandemia. Está preparada para alegria que vem, porquê vem. É louco como esquecemos que apesar de não parecer, é certeza que isso tudo vai passar. Será que estou preparando pra quando isso passar? E mais, será que estou preparado para a alegria que virá? Eu nem sei a quantos dias, minutos, segundos ou sentidos que não pensava em alegria. Pura e simples, tipo carnaval. Esses dias achei entre as divisórias do chão de taco desse apartamento, pequeninos brilhos artificiais, ali, bem no meio da sala. Dependendo da posição que olhasse e a direção da luz, brilhava, reluzia, mesmo tão pequeno. Lembrança de carnaval é composta pelo susto do sentido, o prazer do tato e o derrame das pessoas. É quando sabe ser gente, sabe que ser gente é desengonçado mesmo e o que nóis quer é dançar, na verdade. Lembrou que eu quero viver mais carnavais. Oxe, eu quero conhecer o Nordeste pra ir me iludindo que volto e morar lá, dizer que pra sempre é minha morada. Quero mergulhar nas veias da américa latina pra ver se o sangue é quente e doce mesmo. Quero querer muito, absurdamente. Saber que isso vai passar me faz querer que passe e eu quero querer cada vez mais.
Escrevo porque sei humilhar o tédio.
As vezes não consigo, isso é fato, mas que eu sei, eu sei. A arte de escrever é saber humilhar o tédio.
Todas as luzes estão apagadas para que meu foco seja único e exclusivo a tela do computador que me mostra as palavras que eu penso, sinto, sei lá, e mesmo assim, as luzes ali de fora, da frente, em linhas verticais que distorcem a visão, me chamam a atenção com essa dança, esse balaio de cordas que se movimenta lá fora, na rua, no chão preto, alguns ou algumas que se jogam a rua, na ousadia da busca de um ar. Dançam as vermelhas primeiro, sapateiam as luzes brancas. Horizontalizam, verticalizam, remexem e encandeiam. Sinto saudade do espetáculo urbano de luzes que o centro, no início da noite, mostra todos os dias. As seis horas as pessoas saem do trabalho pra que as luzes possam dançar e não sustentar.
Sinto falta de dançar.
Uma ode à vontade que lembro que tenho, que tenho que ter, que quero querer, que quero ter, que me faz ser ser-impressionável pelo movimento mais suave da vida.
Sonho com a lembrança do futuro.
Que presente esses textos, meu bem! Obrigada! ♥️🥹