Quarentena e saúde mental: Pílulas sobre ansiedade, produção e calma.
[Textos do diário da peste ou quarentena.]
[Textos do diário da peste ou quarentena.]
Bom, passaram-se alguns poucos meses desse isolamento social que, apesar de ser uma ação necessária, já tá chato pra caralho, consigo dizer com um tanto mais de nitidez o que andam se passando n’algumas angústias humanas nesse período, com base no que outros psicólogos escrevem e também nas sessões de terapia individual que tenho conduzido.
Desde que iniciou-se todo o papo de isolamento social tive que, de algum jeito, tentar buscar compreender alguns tipos de previsões para tentar estruturar como eu conduziria um processo terapêutico em meio a essa mudança tão brusca que, apesar de não ter sido necessariamente de uma hora pra outra, afinal, assistimos dia após dia as coisas piorarem e, pra nós, no Brasil, piorarem ainda mais, o sentimento que, particularmente tenho eu, é de um soco forte no estômago e que, só agora, depois desse esquisito tempo, é que começo a voltar a recobrar a consciência que tinha ficado turva pela dor.
Em análise não muito profunda, mas perceptiva, era de se esperar que o “mal do século” ou “mal da contemporaneidade” se intensificasse de formas agudas, ou seja, a ansiedade e a depressão. O confinamento dentro da casa, não porque se quer, mas sim, porquê é necessário quebra as dinâmicas de existência que o capitalismo nos gera. A roda não parou, mas que está problemática, está. O ritmo que é incrustado no ser humano diz que precisa de nós na mesma frequência que antes, todavia, é humanamente impossível manter-se nesse mesmo ritmo quando tudo, a realidade como um todo, mudou. Justamente por tudo ter mudado, mas os tais deveres cansativos não terem mudado, gera-se uma incompatibilidade ainda maior. Como eu posso ser produtivo — palavra incômoda dos últimos tempos — como antes se é impossível sequer exercer minha própria existência como antes? E nessa confusão, literalmente, existencial, as possibilidades de respostas ou dúvidas de si próprio são escarradas com intensidade. Autossabotagem, crise existencial, dúvidas da própria capacidade, falta de sentido, falta de movimento, a cotidiana e indesviável reflexão de si para si próprio… Enfim, a insegurança e, não é pra menos, que esse sentimento tenha sua cor saturada nesse momento, pois, é a atmosfera vivida. Se tem algo que se está, é inseguro.
A insegurança é uma afetação que é direcionada. Quando se está inseguro, a insegurança é em relação a algo, alguém ou si próprio, tendo caminhos facilitados a se trilhar, vem de mãos dadas ansiedade, pois, ansiedade se relaciona a algo, alguém ou si próprio também, de onde nascem ou, se não nascem, gostam de mostrar as caras, outros tipos de afetações, como a culpa. Tudo isso podendo ser resumidamente de forma grotesca para fins ilustrativos, como um sentimento que se assemelha a estar devendo. Devendo algo, devendo alguém, devendo algo a alguém… O questão não é o que se está devendo, mas como e por que se está devendo. A problemática não é quem deve, mas sim quem cobra e, toda essa analogia, é pra deixar explícito que o problema ou a culpa não é de quem sente os sintomas, mas, sim, de toda a estruturação do Estado capitalista que, independente se vivo, morto ou vivo-morto, não deixa de cobrar a alma.
Então, pra deixar absolutamente visível, nítido e cristalizado: A pandemia atual não vem mostrar a fragilidade do ser humano, como ser, mas sim a fragilidade do ser humano que detém o Poder e que tá pouco se fodendo se morrem dez ou dez mil, desde que os números na conta da “pessoa jurídica” estejam rolando entre os três, quatro, cinco, seis zeros no saldo. O que faz com que a doença mental-social atual piore está bem longe de ser a sua ou a minha incapacidade — e tenho de dizer que se estamos com vida em meio a tudo isso, somos capazes pra caralho — pra falta de uma palavra melhor, mas sim, a incapacidade da arcaica da estruturação atual que rege boa parte do planeta, que, nesse atual estado já desgastado, não consegue esconder que não sabe lidar com problemas, por isso os “não-povo”, símbolo burguês personificado do capital, aponta para o povo e diz que a culpa é nossa. Alguns vomitam, alguns se calam, outros engolem e, sinceramente, quando penso profundamente, consigo compreender quem engole, não como um todo, não arrisco minha mão e nem aceito, mas compreendo algum pedaço.
Portanto, hei de territorializar o que são afetos nossos e o que são afetos que tentam fazer engolir e, deixo também dito aqui, que tais percepções se contextualizam no agora, no atual, pois, estou falando aqui sobre depressão e ansiedade, dois espectros que atingem a saúde mental num espectro, literalmente, gigante e individual, todavia, as raízes alguns porquês, agora, estão a vista, desenterrados pra fora do discurso mantenedor e docilizado dos corpos nossos.
Longe de mim tentar dar conselhos, milagrosos ou não. Muito além de ser psicólogo e compreender que — mesmo que não concorde — entenda-se o símbolo de minha profissão como um símbolo de poder ou detentor de conhecimento, sou muito mais humano. Todo e qualquer título perde a disputa frente o título de ser humano, compartilho, portanto, quaisquer tipo de ações que tento fazer como humano que usufrui da psicologia para saúde mental, apesar de eu mesmo não estar em terapia, entretanto, estou tentando resolver isso, afinal, grana tá foda ultimamente (e isso vai pra outra parte dessa série de textos)
Tenho repetido pra mim, sempre que possível a palavra “calma”, pura e simples, mas não em tom de quem diz, inutilmente, para se acalmar em meio a uma onda cotidiana de nervosismo, mas, num tom mais filosófico e longo do que só uma fraca definição da palavra. É necessário que se olhe o prisma por outros ângulos para ver como a luz se move e pode iluminar melhor a visão. Essa calma que digo, de alguma forma, está presente nas entrelinhas do que foi discorrido nesse texto, tento apontar que há pesos que são nossos e pesos que não são nossos, é o que consigo fazer, se pudesse fazer mais, faria, mas aí eu seria algum tipo de Deus e eu sou só um psicólogo também tentando lidar com tudo isso.
Esse outro prisma que tento explicitar aqui não é sobre o movimento de reação, mas, sim, sobre o movimento de ação. Quem, melhor que eu, fala sobre esse tipo de calma é Emicida, em seu dignissimo álbum “AmarElo”, inclusive, em todas as últimas formas de expressão que Emicida tem expressado, mas, principalmente na construção desse álbum. Diz “Permita que eu fale não as minhas cicatrizes”, pois, as cicatrizes estão mais que invadidas, mostradas, explícitas, pra então dizer “Quem tem um amigo tem tudo” não só pra não esquecer, mas pra deixar lembrado. Isso tudo não morreu e, provavelmente, nem vai.
Percebe a virada do prisma? O ângulo diferente da luz? É sobre isso. Temos de apoiar em algo, não é momento de egoísmo. Agora, literalmente, o individualismo mata, não só um, como muitos. É momento de apoiar-se nas potências e possibilidades.
A calma quem destrincho é em sua grandiosidade mais filosófica possível, reiterando, que vem como ação e não como reação ao estado comum de ansiedade. Uma voz ativa da própria calma, acalmar-se é sentido de resiliência e, principalmente, é absolutamente permitido que possa se acalmar. Algum tipo de alívio, agora, é necessidade. Transfigurar a frase “Estou nervoso, preciso de acalmar” para “Quero me acalmar, portanto, posso me acalmar”. Não é fácil, não mesmo, mas é possível e sempre que tenho a possibilidade de encaixar essa frase de Deleuze, encaixo para poeticamente corroborar com o que digo:
“Um pouco de possível, se não sufoco.”
Ainda há tempo.
Todas as pinturas usadas no texto são de DENIS SARAHZIN.