Rap: A excelência das mina e a mediocridade duns cara.
Bom, deixa eu já fazer o tal disclaimer pra não arrumar pra minha cabeça: Essa reflexão não é sobre algum tipo de comparação ou até mesmo…
Bom, deixa eu já fazer o tal disclaimer pra não arrumar pra minha cabeça: Essa reflexão não é sobre algum tipo de comparação ou até mesmo pra pagar de “feministo”, são fatos, tais quais eu usufruo pra analisar e não os crio. A rixa (cis) de homem e mulher não sou eu quem fez, muito pelo contrário, é sobre a estrutura social da parada. Em segundo lugar, o título do texto vem com “DAS mina” e “duns/de uns cara”, ou seja, a diferenciação de preposição, não é à toa, “duns” é indicativo de “alguns”, portanto, não “todos”, pois, seria de uma bela injustiça generalizar nesse caso. Mas, pras mina, sim, faz sentido generalizar e explico o porquê.
Nesses últimos tempos algumas coisas tem erodido na minha mente e acho que o que me virou a chave pra dizer “Ok, tenho algumas falas sobre” foram advindos do novo álbum homônimo a artista Bárbara Bivolt, rapper Paulista, que já trampa há um tempo com rap e, finalmente, em 2020 nos presenteou com esse álbum que tem excelência do início ao fim. Nas letras, na estética, nas produções, no flow, na mistura e, junto a tudo isso, também no audiovisual. Seu último clipe, “Cubana” lançado no início de abril de 2020 pode muito bem confirmar o que eu disse aqui, isso porquê, no lançamento do seu álbum, lançou duas músicas, com dois videoclipes diferentes que ao serem tocados juntos se mostram outra música e outro clipe… Entende o que tô falando de excelência?
Acompanho rap de uma forma mais profunda desde 2018, meus textos passados não me deixam mentir, meu tcc sobre Racionais MCs também não me deixa mentir, então, numa linha minimamente lógica, pra falar com contundência, é um processo natural o garimpo no gênero musical, pra ouvir o máximo de vozes possível que tenham algo a me dizer, não só por um motivo “técnico”, mas, por desejo também. Eu gosto muito de rap e cultura hip-hop como um todo, é inefável o que essa cultura fez por mim. É parte do meu cotidiano e, portanto, me ponho a ouvir muita coisa, me inteirar de uma forma que complementa meu âmago e, hoje, em 2020, posso dizer que tenho um arcabouço de conhecimento de artistas que, o mínimo que se pode a dizer, é que é grande… Talvez, grandinho, tanto faz, e, óbvio, também sei que tem mais gente que saiba mais do que eu. Inclusive nunca nem me arrisquei ou arriscarei fazer um rap, sou só um poeta fajuto. Falo do olhar de um admirador e de um consumidor disso tudo.
Posto, então, o contexto, digo que há uma discrepância notória, muito grande, na excelência dos trampos das minas e trampos feitos pelos caras.
Falar e apontar sobre machismo no rap, tanto quanto na sociedade, se tornou algo inexorável e cotidiano, não vou me estender ao conceito da parada, até porquê já escrevi um texto me derramando só nessa discussão, enfim, é uma coisa sabida e vivida pelas minas dentro não só do rap, mas da cultura hip-hop como um todo. A questão de toda a falação aqui é como nesses tais garimpos, no decorrer desse tempo todo, são como esses e essas artistas chegam até mim, absorvo suas artes e mantenho ou não essas artes comigo, com isso, uma percepção que tenho tido é que muitos caras do rap passam por mim, eu ouço, curto, e é isso, claro, com a quantidade de trampos que ouço, até que muitos ficam, mesmo que não seja um objetivo meu agrado — isso soaria prepotente pra caralho — não sou uma pessoa difícil de agradar, todavia, os trampos que ouço das minas, todos ficam comigo de alguma forma. Em lembranças ou no cotidiano ou nas discussões. É uma parada de se manter e, como estamos falando de música, de se ouvir cotidianamente, saca? E quando eu digo todos é, literalmente, todos, até revisei minhas músicas salvas aqui pra poder afirmar isso com afinco. Todas as minas do rap que ouço são excelentes.
Pra continuar, deixa eu explicitar os significados das palavras “excelência” e “mediocridade” pra que fique ainda mais claro minha fala:
Excelência
substantivo feminino
qualidade do que é excelente; qualidade muito superior.
2. tratamento que se confere a pessoas das camadas mais altas da hierarquia social [abrev.: Ex.ª ] ☞ inicial ger. maiúsc.
Mediocridade
substantivo feminino
qualidade, estado ou condição do que é medíocre; mediocrismo.
2. situação, posição mediana, entre a opulência e a pobreza; modéstia.
Então, espero que fique, de novo, nítido que eu não estou condenando a arte de ninguém e sim o que se faz com essa arte pra além da criação da mesma, até porquê eu tenho imensa dificuldade em dizer que qualquer arte é ruim, a partir do momento em que há uma expressão artística proferida, ela transgride o “bom” e o “ruim”, todavia, tem expressões artísticas que me apetecem e outras que não me apetecem, como qualquer ser humano. Mas, aquém disso, posso afirmar que sim, o mundo está cheio de arte medíocre e, diferente do significado geral usado da palavra “medíocre”, que é encarado como ruim, não contempla o significado gramatical da palavra, tal qual significa algo mediano e, sinceramente, eu não tenho problemas com mediocridades, mesmo. Faz sua arte aí que, pra mim, é só força.
Entretanto, estamos falando sobre artistas profissionais e, quando se coloca o “profissional” na frente, estamos falando sobre dinheiro, grana, bufunfa, e pra sentidos mais dramáticos, mas não irreais, sobre comida. Sobre botar comida na mesa, sobre ter dinheiro pra botar comida na mesa. Estamos falando de música, portanto, a música tem que chegar no ouvido das pessoas, dos ouvintes, seja por shows, vendas, streamings, independente disso, mas é necessário ou receptor dessa arte pra que se possa gerar dinheiro com ela e, se tratando de uma sociedade gargarejante de capitalismo, quanto mais pessoas ouvindo, melhor e, me ligando nisso, eu fui olhar o número de ouvintes de várias minas e comparar com o dos caras e, pra surpresa de ninguém, a diferença é bem gritante.
O hip-hop, movimento inegavelmente revolucionário, mostra que essa revolução tem seus tropeços, que tem algumas partes de seu corpo engolidas pela estruturação dos valores sociais quando nos apresenta esses fatos. Dois pontos me incomodam nessa percepção que, olhando bem, são até que bem óbvios. O primeiro é por ser um movimento revolucionário que tem suas inúmeras glórias em favor das pessoas pretas e pobres — não a toa faz parte crucial da minha ética de vida — e, como todo movimento revolucionário, tem suas manchas e, a meu ver, como um reflexo da sociedade que quer tanto mudar, se admite e se mantém, não tão diferente assim da mesma quando se trata sobre a hegemonia dentro do que constitui o movimento, São homens-cis que detém o poder e a notoriedade e eu boto toda a fé do mundo na manutenção dessa mancha, mas é muito foda ver discursos que tentam corrigir o machismo dentro do rap — outros, nem tanto — e no trampo dos caras, que são suas vitrines, não ter uma mina na produção ou em participações que não sejam só o refrão ou, quando tem, ter uma ou duas, quase que como quem diz num subtexto “Beleza, tem essa mina aqui no álbum, tão felizes agora?” e muito longe de ser algum “intimismo da obra” porquê tem álbum a dar com pau aí com 20 participações, produção de muita gente, arte de muita gente e vai ver são homens.
Hip-hop é um movimento essencialmente equalitário, sendo assim, a partir do momento em que há um gênero sobre o outro dentro do movimento e nenhuma ou pouquíssimas ações pra se equalizar, ou seja, a partir do momento em que o movimento reproduz valores da sociedade que contribuem pra essa não-equalização, ele se mostra supremacista. Não a ideologia que constitui, mas, sim, quem constitui a parada.
O machismo no hip-hop faz o hip-hop ser menos hip-hop.
Em segundo ponto é um tanto básico, mas, vale ser explicitado: Tem muita mina foda demais na cena. Foda mesmo, marcante, excelente e, principalmente, autêntica.
Quando falo de autenticidade, estou falando de um valor que valorizo no máximo da sua potência, pois, transcreve, traduz o máximo possível da expressão de um ser e é muito fácil perceber isso nas minas que apareceram nos últimos anos, quando nas que são mais antigas, é uma essência que acompanha o próprio modo criar arte. Particularmente, autenticidade é a única coisa que, acho eu, deve-se a existência, no sentido mais filosófico-existencial dessa frase. É algo que realmente me apetece, então, como já ficou bem óbvio no decorrer desse texto, não é sobre falta de qualidade, muito pelo contrário, é sobre estruturação e reprodução de valores morais que permeiam a sociedade, tal qual não é novidade a ninguém, inclusive as próprias ações que são contra-sistema, o aspecto revolucionário tem seus venenos dentro de si.
Vide hoje as artistas que contemplam a cena do hip-hop em seus diversos gêneros: Ebony que vem mudando o trap brasileiro; Mac Júlia também no trap, na cena mineira que não é só a cena de Belo Horizonte; Iza Sabino que acabou de lançar um puta álbum com FBC, aliás, o grupo FENDA como um todo, constituído pela própria Iza Sabino junto a Laura Sette, Mayra Maia, Paige, DJ Kingdom e Tamara Franklin que, individualmente, incríveis também; ONNiKa prodígio do trap; a já veterana Negra Li; Stefanie que mudou o olhar pras minas no rap; MC Taya que tem um flow impecável; a própria Bivolt; Souto MC que lançou álbum em 2019 traz consigo na rima o discurso indígena; Brisa Flow que também traz suas origens indígenas; Rap Plus Size que traz consigo o discurso das pessoas gordas; Monna Brutal que a meu ver o flow mais incrível do rap atual e traz consigo o discurso LGBTQI+, principalmente das travestis; Budah com seu R&B delicioso; Clara Lima que integrou a DV Tribo, um dos grupos de rap mais importantes do Brasil e lançou álbum independente também; Karol Conká que vem quebrando paradigmas há tempos; Tasha & Tracie que com um EP desbancaram muitos álbuns tidos como os melhores; Drik Barbosa que é uma das principais vozes atualmente; a intensa WinniT; Cristal que lá do sul traz muita expressão das pessoas pretas; Gabz que lançou clipe da música “Pele” e é uma das coisas mais bonitas que vi nesses últimos tempos… Enfim, essas são as que lembrei facilmente de cabeça e sei que tem muito mais, isso porquê eu não tô nem colocando nessa pequena lista as minas no funk.
Todas as que citei, sem exceção, são excelentes artistas, sem tirar, nem por, e óbvio que, também, tem umas minas que são medíocres, mas, numa análise do todo, são exceções, afinal, sempre tem, em qualquer que seja o contexto. A noção que se mostra a mim é que ninguém está ganhando, todo mundo está perdendo, as artistas são pouco vistas, ainda que com uma qualidade vigente nos trabalhos, portanto, menos minas aparecem pra expressar sua arte. As artes dos rappers ficam repetitivas e, portanto, menos aprazíveis, enfim… Em todos os aspectos ao olhar essa divisão injusta sofrem com isso e, no final das contas, isso pode ser resumido com: “E isso é uma merda”.
Há de se prestar atenção nisso, como consumidores de arte, música, rap, hip-hop, seja lá o que for, entendendo um papel ativo na arte, não sendo só receptores do que aquilo que é entregue, mas, compreender background de como é constituído porquê a arte feita no movimento e, também, comercializada não é um favor que a artista faz pra nós, é trabalho. Muito trabalho. Então não é discursinho ou gostar ou falar de “bih” (abreviação de “bitch”) nas músicas que resolve as coisas.
Não é sobre um sentimento paternalista de “ah, vou incluir essas minas aqui, então…” mas porquê elas tão fazendo um trampo do caralho e, que sem receio nenhum de dizer, ninguém mais está fazendo.