outros diários da peste: repetentes repetições repetitivas repentinas.
simplesmente esqueci de colocá-los no livro.
Primeiro, pra quem não sabe eu tenho um livro publicado que tá aqui, ó: link do livro do matheuzin.
Então, esse livro começa a nascer - sem saber que ou se nasceria - no auge da pandemia, meados de abril, maio de 2020, aquela época que tava todo mundo completamente perdido, aterrorizado, paranóico, solitário e enlouquecido no pior do sentidos possíveis. Numa dessas buscas do que fazer com o isolamento social eu me propus a escrever um diário de fluxos de consciência e, bom, diário, como a própria palavra diz, é dia-a-dia e, claro, falhei em escrever todos os dias - não sirvo pra fazer nada todos os dias como dá pra ver na periodicidade dessa própria newsletter, nem semana a semana eu tô conseguindo, porra - mas, ao abandonar o diário, foquei em passar digitalizar os textos, revisar, editar, ver como é que publicaria, enfim, etc. e, nesse corre todo, eu simplesmente esqueci de colocar os três primeiros textos que deram o estalo do livro e, na versão final, eles simplesmente não foram e eu gosto bastante deles, portanto, colocarei aqui, pois, acho que não valem só pro contexto da pandemia, pelo contrário, portanto, aproveitem.
27/05. Fluxos de consciência dentro do ano de 2020. O ano da pandemia.
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A impossibilidade de um mantenimento de escritos cotidianos se dá a como o tempo fosse dividido ou não-dividido. O tempo agora tem cara, mas não tem rosto, é amálgama pura, onde não se entende e não flutua, só se desliza, quase sempre caindo. O sentimento é de um arrasto de uma lesma ou qualquer animal viscoso. Consigo me sentir como o rastro da substância viscosa que fica no chão em meio ao arrasto.
O tempo se desfazendo, o espaço perde apoio, é difícil, muito difícil saber quem se é hoje. Porra, é difícil saber o que é vida. Se isso é vida ou se é espera de vida, se é sobrevida, se é nada… A confusão é caótica, mas a anestesiada docilidade dos corpos que compõem os seres humanos faz com que a calma seja traíra.
Hoje, nesta noite fria de Belo Horizonte, fazem dez graus. Muitas pessoas isoladas em suas casas e o frio ganha corpo. Por ser frio, quando ganha mais corpo, fica mais frio, longe da quentura. Quem busca a quentura é a gente.
Fico a pensar, em meio a essa nova peste contemporânea, quem são as pessoas que dormem na rua agora, como será que anda o sono dessas pessoas? Um dia marginalizadas em meio a um monstro de um milhão de facetas-caóticas-cretinas-hipócritas-tentadas, depois, uma rua de um milhão de solidões em suas mais puras faltas de matéria.
Hora penso o que é a vida e me aterrorizo, há coisa que dói demais no mundo. O mundo é cheio de dores, dores que os seres humanos ensinaram.
Hoje mais cedo, lia em um livro de Valter Hugo Mãe sobre a natureza. Ele dizia que a natureza é inteligente e isso ficou a pairar na minha cabeça como quem balança numa rede, diz também que se sonhar grande demais, a realidade aprende. Pergunto-me se quem ensinou a doer o mundo foi a gente… Tenho intuição, não tenho certezas e nem quero ter, que eu seja só um pensador e que já pensa que pensa demais e dói a cabeça.
Penso, inclusive, se tenho pensamentos o bastante pra que alguma vez que eu escreva “diário” seja verdade. Dia-a-dia.
Sei que enquanto sem terapia, escrever seria o que mais se aproximaria de algum tato diante do todo. Estar sozinho nesses tempos de quarentena, isolamento social, seja lá o que for que se tornou o ano de 2020, é de se encarar como uma intranscendência. Não transgride, transcende, transpassa nada, pelo contrário, é o inverno, é sobre perceber até seu núcleo, centro existencial. Uma crise da crise existencial. Costumo dizer que tenho tido três humores nesse período: Apático melancólico, mediocremente bem e a beira da loucura. Sinto que nunca acertei tanto nas especificidades de meus humores.
Meus adoçantes dos dias tem sido chá-mate, maconha e um jogo. Vez ou outra um livro aparece como sobremesa surpresa, mas é sobre esperança, não sobre esperar.
De resto, haja repetição. Repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição, repetição. É insuportável.
Não há uma rotina, há uma tentativa estranha de diferenciar a repetição e, por mais ilógico que possa soar, faz sentido para que cultive-se a esperança e uma vontade de sonhar. Uma disciplina para cuidar dum sonho, sonho de sair de casa.
Eu olho o chão de taco desse apartamento e eu não suporto mais olhar esse chão de taco desse apartamento.
Essas linhas, quadradas, encaixotadas, de cores claras e que me esquentam e me acomodam e eu agradeço, mas me prendem, tem que me prender, se não literalmente morro. Me faz achar mais insuportável.
Eu nunca mais quero ficar em casa, vontade essa sabida que quando sair e apreciar novamente, sabe que vai ansiar casa e, de novo, entraremos numa nova jornada de ressignificação.
Hei eu de sair desse isolamento, ressignificado, com resignificancias, com as ressignificações possíveis entre os dedos, com coragem para ações, com asas para conseguir voar, com vontade de conversar, com pé pra andar a rua, com vulnerabilidade pra doar e carnaval pra dançar. Quero, sinceramente, sair disso tudo, bem. O máximo que puder de bem.
Sei da parede de espinhos que mesmo quando essa pandemia passar, os rastros viscosos que vão deixar ao caminho pela frente. Os rastros políticos que enojam e saem pelo meio dos dentes desse verme burro eloquente que brada palavras no poder que não valem um fino fio de cabelo de cu de qualquer cidadão desse Brasil. Onde não cabe nem vírgula, nem ponto, só ponto final.
Não sei como serão os brasileiros daqui pra frente, mas aos que viverem e viverão e viveremos, terão duros calos nos pés.