Olha, sinto que nasci muitas vezes em minha vida.
Para além de meu nascimento concreto, percebo cada momento uma adição a minha ética existencial que, de uma forma ou de outra, muda minha dinâmica de vida, fazendo com que eu encare como um nascimento.
Hora nascimento, hora renascimento.
Lembro que nasci quando descobri o erótico entrando por debaixo das mesas das festas para, talvez, conseguir enxergar o que havia por debaixo das saias das meninas numa curiosidade voraz. Lembro que nasci quando descobri o poder da fantasia em que, mesmo que qualquer ser no mundo quisesse, seja humano ou deus, nada, nem ninguém, conseguiria entrar naquele mundo secreto que havia e há em desenvolvimento na minha cabeça até hoje. Lembro que nasci quando vi que o mar era de verdade no auge de meus 26 anos e que era muito, mas muito maior do que qualquer imagem ou fala que tinha tentado expressar. Lembro, também, que nasci quando descobri que a escrita era algo muito além de redações e que serviria pra me fazer nascer, renascer e, não obstante, me salvar de morrer tão novo. Lembro que nasci quando percebi que histórias representavam muito mais que uma reação auditiva a contações linguadas ou escritas. Também, lembro desse parto-nascimento - que quase exala um cheiro que só existe pra mim - quando descobri o amor e cá, digo sobre o amor romântico, se fosse escrever sobre todos os conceitos de amor, explodiria.
Trago o amor romântico porque, em certo aspecto, acho que por muito, muito tempo, era basicamente meu altar. Meu totem, meu semideus. Algo que iluminava a vida de forma tão brilhante que não entendia muito bem se era digno de traçar essa linha. Tinha muito amor para dar, mas, não acreditava muito bem se as pessoas queriam essa doação. Pensava numa troca a primeiro momento. Só queria abrir os dedos e expor que, nas palmas de minhas mãos, eu tinha uma coisa bem bonita pra mostrar, porém, como dito, não conseguia enxergar que as pessoas queriam receber essa coisa bonita e, nem era - acho - algo individualizante, relacionado ao meu amor, as pessoas só pareciam estar mais interessadas em outras coisas e, portanto, colocava no canto da sala de dentro de minha caixa torácica, como quem decora um pedacinho da sala de casa com um souvenir bonito e simbólico, daqueles que tem atenção maior ao cuidado para que nenhum tropeço ou distração ameace a integridade da coisa.
Minha navalha de Ockham sempre fora a sensibilidade. É esse meu poder, minha inteligência, meu corte, minha dor, minha poesia, meu alvoroço, minha melancolia, meu sorriso, minha vida e minha morte. Acho, no fim das contas, que sou só sensível, nada mais.
Vide, sensibilidade não é fragilidade apesar de fragilidade ser algo sensível. Sensibilidade é o sentir do tudo e também o sentir do nada, aquilo que não necessita da linguagem pra validar a existência. O sentimento e o sentido se bastam em si, nós é que somos teimosos o bastante pra insistir vidas inteiras na tentativa de traduzir.
Um grande amigo uma vez me disse que escritores são tradutores de sentimentos. Concordo, não nessa simplicidade, mas, concordo.
Penso que escritores são, primeiramente, exímios teimosos, depois sim, tradutores. Não à toa, escrevo.
Em minha ingenuidade, primeiramente, quando comecei a encarar a escrita olho no olho, queria traduzir minha fantasia, meus mundos em minha cabeça, mas, para que eu fizesse isso, tinha que conhecer muito mais do que conhecia do mundo em que vivo. Pelo menos pensava assim quando moleque. Era um leitor lento, se dependesse do aprendizado dos mundos fantásticos para traduzir o meu, demoraria demais e tinha demasiada preguiça e pouca paciência. Então, aceitando isso, fui para o sentimento mais óbvio: O amor.
Por mais piegas que possa soar, aprendi a poesia pelo amor. Sempre digo: sou poeta antes de ser.
Foi ali, naquela criação de espaço e tempo numa folha de caderno, em que parecia que eu podia transformar aquele souvenir em atmosfera enquanto não tinha ninguém pra recebê-lo.
Me lembro bem da primeira menina que gostei, se chama Lorraine - acho que ainda vive - lá por volta da segunda série do ensino fundamental. Ela era quase da minha altura na época, uma menina grande, corpulenta, de olhos verdes grandes e cabelo ondulado. Recordo que tinha o rosto muito manchado de sol. Falava de jeito expansivo, mas não de voz alta. Era considerada uma das meninas mais bonitas da sala e era muito gentil comigo. Dentro de um ambiente escolar, não era comum a gentileza comigo. Pouco sofri bullying de forma diretiva em escolas, talvez por um carisma inerente que me protegia, herdado de meus pais, mas, ainda era eu um moleque preto claro, pobre, (considerado) gordo, com óculos fundo de garrafa devido à miopia de dez graus no olho esquerdo e cinco graus no olho direito, com o diastema atravessando o protagonismo de meu sorriso. Tudo isso na transição de anos 90 para os anos 2000, portanto, quem sabe como funcionavam as coisas, sabe.
Não me lembro bem se disse a ela que gostava dela. Acho que sim. Dizer que gosta de alguém quando criança é algo que firma os alicerces dos nossos pés em relação à vida, não é? Acho que disse, mas, se minha memória não me engana, ela recebeu bem esse sentimento, só não sentia o mesmo por mim e aí descobri um dos meus grandes super poderes. Claro que era ruim receber isso, mas, nunca fora uma questão - até hoje - não ter o amor - ou o gostar - correspondido, era bem simples na minha cabeça: Uhmmm, tá bom, se você não gosta - romanticamente - de mim, não tem porquê eu gostar - romanticamente - de você como eu gosto. E realmente era assim, com o tempo esvoaçante e, até que rapidamente, o sentimento ia diminuindo até que virava algum tipo de admiração, nada angustiante. Realmente simples. Era algo genuíno como quem dizer "tudo bem, então" e realmente estava tudo bem, num quase esplendor de uma racionalidade sensível.
Pois é, nunca - até hoje, pelo menos - sofri por um amor não correspondido, como era e é comum ver pessoas sofrendo intensamente sobre.
Consigo ser empático nesse sentido, porém, só não sinto desse jeito. Enfim.
Depois, me lembro de Susan, lá pros meus onze, doze anos. Fazíamos kung-fu juntos, ela era mais velha, tinha uns quinze anos e a gente convivia muito, éramos da mesma cor de faixa e sempre ficávamos juntos a noite após a nossa aula a tarde, conversando, treinando, se provocando, coisas de pré-adolescente e adolescente. Ela é - acho que ainda vive - baixinha, menor que eu, o que achava engraçado e atraente, pois, naquela época, achava que quando mais velho, mais alto. De dentes e lábios grandes, tinha os olhos finos e esticados, sempre estava de rabo de cavalo, tinha uma voz meio chata daquelas que parecem ter dificuldade de sair da boca e tinha um bundão que formava um formato de meia-lua belíssimo. Isso era muito incrível, pois, as roupas de treino eram largas e se falamos de adolescência, falamos de hormônios e descobrimentos do corpo, não há como envernizar a adolescência romântica sem a vontade incessante de putaria leve.
Foi com ela meu primeiro beijo. Foi um ótimo primeiro beijo. Batemos os dentes apenas uma vez em meio ao beijo e, no momento que batemos, ela parou o beijo, deu duas batidinhas com o dedo no dente e voltou a me beijar. Nunca entendi muito bem o que foi esse movimento, mas, gosto de lembrar tão nitidamente disso.
Ela gostou de mim, eu não gostei dela. Ela ficou muito sentida por eu não gostar dela além do que já gostava e se afastou de mim. Eu sequer entendia o que é que vinha depois daquilo no quesito de como me portar, percebo que eu era muito mais criança que pré-adolescente e ela mais adolescente que pré-adolescente. Enfim, Foi um tanto triste, mas, gosto que meu primeiro beijo tenha sido com ela.
Depois, ainda no kung-fu, agora um pouco mais velho - fiz kung-fu por quase uma década - veio minha primeira paixão ou, como prefiro chamar, minha primeira adoração.
Ali, sim, compreendi o que vinha depois do gostar.
Lorrayne, o nome dela. Agora com "Y".
Uma saudade de me apaixonar pelo amor. [pt. 1]
Que lindeza de texto. ❤️