este é um texto que reluto a escrever desde que tive a ideia. é ruim a tinta da lembrança nesse caso, apesar de, nalgum momento, ter percebido que tudo mudou e nada mudou. e isso muda tudo.
não sei o que sinto em relação a 2023, mas, é um novo tipo de não saber. pós-pandemia o tempo e espaço nunca tiveram a mesma cara, nem as mesmas roupas, nem os mesmos direcionamentos pros afetos. as linhas se tornaram retas, as ondas estáveis, a lua quente e o horizonte nem belo, nem feio, mas, sublime.
comparado ao texto que escrevi de 2022 pra 2023 há o cúmulo do antônimo, em que discorria em deleite pra tudo que fora gostoso em tal ano. nessa virada, de 22 para 23, estava eu deveras empenhado em achar tudo, tudo mesmo que me traria doçura, prazer, tesão, fogos de artifício, gozo, alegria e todas e quaisquer paixões emblemáticas, simbólicas, viscerais, entretanto, bem no começo do ano - hoje até compreendo que um pouco antes do final do ano, o que torna ainda mais o cínico esse texto de 2022 - depois de um processo de descuidado comigo próprio e um absoluto acidente debochadamente bobo, eu simplesmente não parei, durante quase nenhuma medida de tempo, de sentir dores que beiravam o insuportável. aliás, não só beiravam, como foram insuportáveis. tenho plena certeza que não suportei. não sei bem o que aconteceu, de fato. não é muito sobre sentido, na verdade.
de um mar de esperança qu'eu realmente estava empenhado em ter, me vi com a pior dor física que já senti na vida e que a cada vez que eu fizesse um mísero movimento básico, essa dor aumentava, só não doía quando estava deitado, literalmente. apesar de não ter sido de um dia pro outro, a sensação é que num dia eu estava ok e num outro dia eu não tinha forças pra ficar de pé, brutalmente simples assim.
os dias passavam e absolutamente nada mudava, nada, nada mesmo, eu vivi... ou melhor, morri essa dor durante meses, meses que queria radicalmente esquecer e que nunca, jamais serão perdidos na memória.
um de meus mantras - se é que posso chamar assim - é que "o movimento ajuda a gente a existir" e, nesse tempo todo, o movimento era só dor, era uma ajuda inclemente à vontade de não existir.
se eu me mexesse doía, se andasse doía, se espirrasse doía, se cagasse doía, se sentasse doía, se ficasse de pé doía, se gritasse doía, se tossisse doía, se dormisse demais doía, ad quase infinitum.
quando, ‘“já” ligeiramente melhor, sem ser um ser-gemedor-de-dor, rememoro-me sentado na praça ao lado da minha casa com a postura mais ereta, dura e dolorida possível, sabendo que aquele estar sentado tinha prazo até a dor ficar insuportável e, enquanto vivia esse pontilhar dos ponteiros contados, olhava alguém, o definitivo de alguém qualquer e eu, com toda a humanidade que esse corpo suporta, sentia inveja de alguém poder sentar derramado no banco. morria de inveja, matava e morria de inveja, eu chegava a odiar a pessoa naquele momento, sem rancor e sem angústia, como animal que espreita a presa, mas, nesse caso, definitivamente eu não era o predador, eu era aquele que se sentia cinicamente impossibilidade, pois, eu conseguia fazer tudo e qualquer coisa com meu corpo - algumas coisas não - mas, tudo que fizesse, tinha que pagar com dor no presente e no futuro, tinha que escolher minhas dores.
me sentia o debochado pela vida que me dava a possibilidade de movimento, mas, o preço alto demais a se pagar por tal possibilidade. eu era o semi-impossível, portanto, não tinha nem como me resignar, apesar de esperançar, única, exclusivamente e idiotamente esperançar.
e esperancei do fundo do fundo da minha alma.
enfim, da dor que exige o drama nada dramático, falada, o que também jamais vou esquecer é ter vivido uma crise existencial durante dias a fio, pois, vivi a máxima hiperbólica, parafraseando o próprio ditado, cabeça imensamente cheia oficina de todos os diabos possíveis.
na tentativa de separar em dois momentos, denomino que a primeira parte era o apocalipse e a segunda parte era - em certa parte ainda é - a pedagogia.
nesses tempos apocalípticos, do início do ano até, mais ou menos, julho, agosto... com certeza setembro, para além das dores já bem descritas, eu me ensimesmei dentro demais do meu próprio corpo... pelos primeiros meses não vi absolutamente ninguém que não fosse de uma relação burocrática. médicos, entregadores e comerciantes, basicamente. não só pela dor, mas, pelo aglomerado de afetos e afetações que implodiram dentro de mim, nesse primeiro momento, me isolei pela dor, claro, mas, também por um orgulho, eu diria, com doses de masculinidade frágil talvez também, de que não queria que ninguém me visse tão agoniado, dolorido, duro, em certo aspecto, fraco, frágil e, dos anos que pensava ser cafonérrimo lobo solitário, apesar do cafona, aprende-se a não ser incomodar com a solidão ou, pelo menos, se incomodar pouco. todos os dias eu dormia pensando se amanhã estaria melhor e todo dia acordava e me frustrava, tantas e repetidas vezes que, ainda hoje, acho que perdi pele do meu sono que eu jamais recuperarei. em algum momento, até orei, quase de um jeito clássico, mas, com raiva de Deus. não orava a mais de vinte anos. orei alguns dias, depois esqueci.
enfim, depois desses primeiros meses absolutamente lancinantes e absurdamente frustrantes, regado a tristeza e remédios que poucas vezes funcionavam, eu tinha aprendido - da pior forma possível - o que era disciplina, algo que tinha esquecido a muito, muito tempo, percebi que apesar da minha vida estar deveras acontecendo nesses últimos anos, eu vivi - agora menos - num estado um tanto quanto letárgico. é bem aquele papo que só depois de uma merda foda acontecer cria-se, ou melhor, atualiza-se um tipo novo de visão de vida, valores são mudados, visões são expandidas, vontades são organizadas em outras prateleiras e algo muda. o clichê só é clichê porquê, de fato, acontece mesmo.
nesse momento dito, com bem menos dor, eu tinha corpo, paciência, disposição e possibilidade de olhar o que que é que tinha sobrado após esses tempos, como estava a casa que eu morava, tanto no sentido material quanto literal e, porra, tenho de dizer que foi, no mínimo, ambíguo ou dual ou dicotômico ou, no mínimo, dúbio.
tinha em minha frente um olhar de quem pode ultrapassar ou, pelo menos, chegar ao belo horizonte ao mesmo tempo que, me dei de cara com um aglomerado de sentimentos que constituíam um Medo. uso Medo com a caricatura da letra maiúscula porque não se trata muito sobre o sentimento de medo de comum. medo de algo ou de alguém. era um tipo de medo tão, tão primário que era bizarro. tinha medo do básico. um medo tão antigo, anterior que soava como uma lembrança de quando nem existência existia, só energia, as partículas, as estrelas, pra depois, a explosão.
lembro muito de minha professora falando de maneira ordinária algo que não sei bem o quão ela percebe a agonia que existia em tal frase:
"depois de tanto tempo com muita dor, mesmo quando ela passa, o medo trava o movimento"
era eu.
sinceramente e de forma confessionária, até ainda é um pouco.
tinha medo do movimento, de gente, da possibilidade, de simplesmente sentar num banco, de transar, de mexer demais, de mexer de menos, de deitar demais, de andar de menos, de ir ali, de vir aqui, de que me vissem desconfortável, de que me olhassem, de que me vissem, de que vissem que eu também olho, de minhas preocupações, dos pensamentos repetitivos, da paranoia.
a paranoia da paranoia da paranoia.
não sei se precisava ser assim. acho que não precisava. mas foi.
vivo um processo um tanto quanto pedagógico que me exige, do âmago de minha humanidade, as habilidades de aprender e desaprender. como uma chamada de atenção, algo diz pra eu me ver, rever e achar. como no xadrez, pôr a mim próprio em xeque na tentativa de responder quem irá devorar quem: eu ou eu.
atualiza-te corpo. aprende e reaprende, corpo.
percebo que pra se enlouquecer precisa-se de mais do que eu imaginava.
enfim, no fim, recomeço o começo de uma vida que é minha, irá ser minha e pra sempre vai ser minha. de lá e daqui percebo que quero viajar. quero estar com gente e quero estar sozinho sem que isso seja dicotômico. contraditório, sim, claro; dicotômico nunca.
sinceramente acho que pra se ter uma boa vida, uma vontadezinha de morrer é necessária. mas muita não, muita é palhaçada.
como diz sergio sampaio: não há nada mais bonito do que ser independente e poder se conquistar, sair, chegar, assim tão simplesmente.
e tudo aquilo que de bonito que ele diz numa música de um minuto.
que esse ano e os outros anos eu viva sem dor porque eu vivo, vivo, vivo, muitovivo.
➶➶➶➶➶ ➶➶➶➶➶
juro por tudo que meu ciático começou a doer enquanto lia essa news. linda tua escrita!!