nada em nenhum lugar em tempo nenhum.
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Cansaço. // 2020.
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Cansaço. // 2020.

Outros diários da peste. 4 25/07. Fluxos de consciência dentro do ano de 2020. O ano da pandemia.

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Quem está vivo está presenciando o meio do ano que nem foi vivo.

O último respiro desse ano fora o carnaval e, sem deixar sequer aproveitar a ressaca desse fenômeno — que parece ter sido em outra vida e, por um lado, foi — acabou ali.

Desde então, os sentimentos cotidianos podem ser resumidos em poucas palavras compactas, ainda que as poucas palavras não contemplem o tamanho do sentimento do mundo que carregamos.

Agora, pelo menos pra mim, consigo, sem pestanejar, assumir que minha resiliência anda falha e, consequentemente, assumo que estou cansado, mas, esse cansaço não é atual, é amargurado e arrastado.

Difícil falar sobre qualquer cronologia num ano que sequer existiu direito.

Meu sentimento é de ter sido um expectador, um observador não participante, um impotente frente a tudo isso, ainda que eu participasse de alguma forma.

Vide, sou eu um homem (cis) preto vivendo o Brasil nesse ano. Eu vi, vejo e vou ver muita merda pra além da montanha crescente de corpos advindos pelo COVID-19. Todo dia tem uma merda. Todo dia é um espetáculo de horrores biológico, político, social, ético e todas as variantes que tentam demarcar ou denotar algum tipo de ordenamento da vida.

Ano em que a morte teve muito mais protagonismo que a vida.

Infelizmente, esse texto é sustentado por fios desfiados de esperança. Momentâneo, mas ainda sim, um quase-desesperançoso, ainda que não mórbido.

Estou cansado de estar cansado.

Fazem inúmeros dias que vivo um mesmo tipo de dia, com migalhas de vida. Eu tinha medo d’uma finitude de prazer que, como premonição, via lá no fundo, n’algum fundo, que haveria um enjoo desse balançar estável que é viver este ano inexistente.

Necessariamente imposto que havia de se ficar em casa para não — possivelmente — morrer, passaram-se os dias em dúvida de tudo, passou-se o primeiro mês na ansiedade de sanar, passou-se o segundo mês na criatividade para expandir o Mundo-Casa, passou-se o terceiro em frustrações raivosas e raivas frustrantes, passou-se o quarto mês em apatia e fadiga, passa-se o quinto mês de puro desprazer, tudo isso acompanhado de cansaço. Exausto. Exaurido. Cansativo. Cada um que não se equilibra no topo da pirâmide burguesa   teve, tem e terá que carregar um Mundo nas costas. Todo dia.

Eu que sempre idolatrei a vagabundagem, sou essencialmente vagabundo-nato, mas me vejo movimentando quase que só pelo meu trabalho que, por via de regra, em sua base, é sobre ajudar pessoas, usando dos termos comuns — e no final das contas, bem didáticos — sobre ajudar a cabeça das pessoas e o ethos disso me anima, pois, no final das contas, acaba ajudando a minha cabeça também,  consigo sentir um pertencimento, um pertencimento que não necessariamente é sobre acolhimento, mas, pelo — literalmente — menos “tamo na mesma merda”.

Claro que conheço meus prazeres. Claro que tenho pessoas que amo e que falo e que quero. Mas é um ano de impotência. O Mundo é grande demais pra caber dentro de uma propriedade privada… E, pelo amor de deus, que se foda a propriedade privada. O que fazer quando esse Mundo-Casa vira uma sala de espera.

Qual espera eu escolho? A da vacina ou da do fim do mundo?

São tempos inimaginavelmente difíceis para os sonhadores.

Nunca foi tão difícil sustentar os sonhos.

É de se ver num limbo quando os prazeres se tornam ocupadores-de-cabeça quando eram para ser aquilo que são: Prazeres.

Pra eu que amo cinema, assistir um filme se tornou necessidade. Pra eu que amo literatura, ler um livro se tornou necessidade. Pra eu que amo jogos, jogar algo se tornou necessidade. Pra eu que amo movimento, fazer exercícios se tornou necessidade. Pra eu que amo o sol, vitamina D se tornou necessidade. Pra eu que amo sexo, masturbação se tornou necessidade. Pra eu que amo rua, ter — mais — medo da rua se tornou necessidade.

Eu tô exaurido da necessidade.

Necessidade não é vontade. Necessidade é mantenimento. Necessidade é estar vivo. Vontade é movimento. Vontade é prazer. Vontade é viver.

É difícil compreender qualquer parte do que se vive agora. Qualquer aprofundamento é um afogo da sanidade.

É bizarro compreender a realidade como mais absurda que qualquer loucura ou fantasia e ter de lidar com isso. É necessário segurar firme o sentido das coisas momento, de verdade.

Com essas palavras vomitadas, consigo, enfim, desentupir as gargantas de minhas mãos para escrever, sendo essa a arte que me salva, que estava cansada também, mas hoje resolveu dar as caras. É com isso que respiro, sem muita procura de um sentimento porquê há um descompromisso com o sentido ou um compromisso firme demais com o real. É difícil compreender qualquer coisa. Parece que a linguagem exibe de forma explicita suas falhas, pois, não consegue contemplar muito do espirito desses tempos contemporâneos. Clamo pra que todos consigam se esvaziar desse cansaço de alguma forma, pois, sei que há muito engasgo na gente, sem que seja morrer, pois, morrer, agora, faz muito menos sentido.

“Me dê um pouco de possível, se não, sufoco”, são as aspas de Deleuze.

Hei de sempre lembrar disso.

Se tu curte essas inutileza de falazada, considera se inscrever aí no NADA EM NENHUM LUGAR EM TEMPO NENHUM que você vai receber essas paradas todas toda semana.

1 Comentário
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sobre nada em nenhum lugar em tempo nenhum, e tudo de mim pro mundo e do mundo pra mim.
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matheus morais inácio.