nada em nenhum lugar em tempo nenhum.
nada em nenhum lugar em tempo nenhum.
Fim de mês.
0:00
-15:51

Fim de mês.

é foda.

Se tu curte essas inutileza de falazada, considera se inscrever aí no NADA EM NENHUM LUGAR EM TEMPO NENHUM que você vai receber essas paradas todas toda semana.

É desde 2019 que acho que conheço a famigerada "vida adulta", de fato. É nesse tempo que eu sinto que o "pacote de vida adulta" me atravessa foda.

Perspectivas de vida ficam mais turvas e desesperadas; ansiedade cotidiana é óbvio; círculo de amigos diminuto; combinações de "bora se encontrar em novembro" quando ainda é agosto; uma maturidade emocional que traz a percepção de que muitas coisas não amadureceram, como também estragaram; papo de trabalho sempre aparece; cansaço; intensificação das dores e ressacas; mudanças brutas de gostos; enrijecimento de gostos antigos; dinheiro e falta de dinheiro; enfim, cada um com seu pacote.

Digo isso porquê tô mais perto dos trinta anos e os trinta anos tem toda essa pompa simbólica como se fosse o platô da juventude - pelo menos na pós-modernidade - ao mesmo tempo que é um "início" para a velhice-sábia, não a velhice que enferruja. Entretanto, digo isso também porque foi em 2019 que eu boto a cara pra vir para uma capital - minha única e amada Belo Horizonte - recém formado, sem muita noção do que eu ia fazer e com uma frase de minha mãe que até hoje lembro em que ela dizia: "Matheus, a gente te ajuda três meses, se você não estiver se bancando em três meses, você volta pra cá e vê o que você faz". Essa foi uma das frases mais instigantes e assustadoras que eu já ouvi, acho eu. 

Bom, rolou, eu estou em BH e me banco, mas, vamos desde o começo.

(Eu adoro uma contextualização)

Já não moro com meus pais desde quando comecei a cursar faculdade. Quem é pobre no interior do estado de São Paulo tem duas escolhas: Ou começa a trabalhar em trabalhos de mão-na-massa buscando algum tipo de progressão tanto econômica quanto social, aquilo de ter uma casa, uma moto e uma família ou, então, você faz faculdade pra que, em algum momento, você se expanda para outros lugares. Eu escolhi fazer faculdade - apesar de odiar instituições educacionais - porquê eu sentia que aquela cidade era pequena pra mim, eu via tanta coisa longe de mim que eu parecia um moleque sem dinheiro vendo uma vitrine de doces gostosos - se pá eu era, de fato, esse moleque - então, meu único plano era buscar essa expansão. Meus pais que são duas pessoas que vieram de famílias pobres, um estudando pouco e outro estudando menos ainda, sempre tiveram o famigerado "meus filhos vão ser estudados, custe o que custar" e realmente foi assim. Minha mãe principalmente sempre bateu nessa tecla e, mesmo sendo nós pessoas pobres, ela dizia pra mim e pra meu irmão: "Vocês não vão trabalhar, vocês vão estudar". Meu pai não concordava muito com isso, ele sempre tentou dar um jeito de puxar eu e meu irmão pra algum trabalho, mas, se tem algo que é difícil é peitar minha mãe, portanto, sempre foram tentativas falhas e, na real, eu nem sei se eu discordo do meu pai nessa época. Eu e meu irmão podíamos trabalhar, nem que fosse de algum bico para ajudar alguma coisa na casa. Porém, eu agradeço muito a minha mãe por não ter me deixado trabalhar porquê, bom, eu sou uma das pessoas que mais não gosta de trabalho que eu já vi andar na face da terra, mas, isso é papo pra outro texto. Enfim, sigamos.

Minha relação com a dinheiro foi ou de desimportância ou de negação mesmo. Por boa parte da minha vida eu não me importei com dinheiro, num sentido que achava chato e como eu nunca tive muito, aliás, o que eu tinha era só o necessário, realmente não fazia sentido eu me importar e, depois, quando tenho um tanto mais de noção sócio-política e me revolto com o mundo - já numa faísca anticapitalista - eu começo a negar o dinheiro. Eu não tinha dinheiro e não tinha perspectiva de ter dinheiro, meu mundo era pequeno demais pra eu ter sonhos, qualquer coisa que fugia do básico era surpreendente. O impossível reduzia meu mundo. Não tinha dinheiro pra viajar pra algum lugar, não tinha dinheiro pra ir ver o mar, não tinha dinheiro pra gastar quando saísse a não ser pra comer alguma coisa, comer alguma coisa diferente em casa era evento mensal, as roupas do meu irmão passavam pra mim pra não gastarmos, enfim... Quem sabe, sabe... Então, junto com a adolescência eu passo a odiar quem tinha mais mundo que eu, quem tinha mais dinheiro, quem podia fazer o que eu não podia, quem tinha tênis novo, quem tinha mais possibilidade que eu. Enfim, eu odiava ricos e nessa época, no interior havia apenas três classes: Pobre, bem-de-vida e rico. Pra mim, o que fugia do pobre era rico, então, eu distribui muito ódio gratuito para classe média nessa época. Não me arrependo de nada e continuo odiando ricos, hoje com muito mais motivos, mais sofisticações sensíveis, teóricas e práticas, mas, o núcleo ainda é dessa época.

Na faculdade, ao morar fora, claro que eu ia ter que lidar com dinheiro de forma diferente. Meus pais se mantiveram no mesmo esquema: "Ó, a gente faz das tripas coração pra pagar seu aluguel e te dar uma alimentação, você arruma algo barato aí e trata de se formar" e, assim eu fui. Era estranho porque eu sequer tinha ideia de como meus pais estavam se sacrificando pra me dar algum tipo de conforto pra eu focar o máximo possível, então, eu ainda não precisava trabalhar, mas, definitivamente eu não era a galera que não precisa trabalhar numa universidade pública, era literalmente o básico ali e sobrava pra um ou dois salgado em alguma hora - nessa época eu ainda não bebia nem uma cervejinha - mas, eu também não era a galera que tava ali trampando manhã e tarde pra ir estudar a noite fazendo, também, das tripas coração pra conseguir estudar. Não era o pior dos lugares, claro, mas, ainda era um lugar estranho de se estar.

Isso só mudou depois de alguns semestres onde eu consegui obter o auxílio que a universidade proporciona depois de uma missão burocrática interminável de documentos que basicamente dizem "sim, universidade, eu sou, sim pobre". Auxílio-moradia e auxílio-alimentação e agora eu podia dar uma aliviada pros meus pais como também ter uma graninha pra - agora sim - tomar uma cervejinha vez ou outra. Universitário não precisa de muito pra viver, apesar que os valores proporcionados dentro de uma universidade sejam ridículos e, muitas vezes - principalmente nos tempos atuais -, humilhantes.

Enfim, divaguei novamente.

Claro que a partir daí minha relação com dinheiro era algo, eu tinha um pouquinho de dinheiro pra fazer algumas pequenas coisas que, dentro daquele mundo universitário simplório, era ok. Fazia coisas básicas pela primeira vez, como ir num bar e gastar mais de 30 reais, isso era bem novo. Ou seja, invariavelmente, minha relação com dinheiro começa a ficar mais próxima, mais... possível. Talvez e, desde então, consegui fazer mais coisas, mas, não muitas - por exemplo, só fui conseguir viajar pra ver o mar no ano passado - mas, claro, tive descontrole financeiro, me endividei, pedi dinheiro emprestado, aprendi a economizar dinheiro, desaprendi a economizar dinheiro, entre outras situações financeiras possíveis e isso dura até o final da faculdade, onde, claro, bem mais maduro em relação a todos os aspectos possíveis da vida, porém, também quebrado em inúmeros aspectos da vida.

Quando me formo, não tenho uma moeda no bolso e não tem mais o que se fazer além de ir buscar essas moedas, aí sim, tudo fica diferente.

Conhecer a ansiedade cotidiana da vida adulta para quem não é rico é muito parecido com a sensação desgraçada de continuar tendo vontade de fumar cigarro quando já se parou de fumar cigarro. É de uma agonia que eu não tinha muita noção do sentimento até morar sozinho pós-faculdade.

Eu escolhi vir pra BH na cara e na coragem, eu literalmente fui movido por um sentimento de "eu não quero voltar a minha cidade natal", afinal, sair dali foi o motivo de tudo isso, portanto, eu tenho que ir pra algum lugar. Eu tinha apenas quatro coisas concretas e práticas para trazer comigo: meu corpo, um diploma, a oportunidade de dividir uma casa com um amigo que eu não tinha ideia de como eu iria pagar e uma grana fixa de meus pais por mês durante três meses e que já vinha com um gosto absolutamente amargo, afinal, eu já tinha 24, 25 anos, meus pais estavam mais velhos, mais cansados e, definitivamente, não tinham a menor obrigação de bancar marmanjo.

Daí, então, foram perrengues e mais perrengues. Lembro de todo dia ser um sentimento de fim de mês - e chegaremos lá no bendito sentimento de fim de mês - porque todo dia que eu não fazia nada, era um gole a mais no desespero e eu não tinha quase nada de dinheiro pra começar nada, ou seja, eu tinha que tratar todo o dinheiro como reserva, ainda que fosse todo o meu dinheiro. Lembro de eu e esse amigo meu que dividimos apartamento por três anos se olhando e rindo com desespero por estar comendo arroz com farinha e sem opção nenhuma para além disso. O problema não era o arroz com farinha, era a impossibilidade de ser qualquer outra coisa. Esse sentimento é enlouquecedor e isso diz muito sobre o que é essa atmosfera agonizante que o Brasil atual passa. Não saber o que vai comer no outro dia é o sentimento de platô do desespero. 

Enfim, como dito antes, essa fase passou - que bom - com muito corre, passos pequenos e aproveitando oportunidades, consegui me estabilizar e ganho minha grana de forma que definitivamente não preciso pensar se eu vou ter algo pra comer amanhã, mas, o sentimento de nunca querer chegar perto daquele sentimento novamente jamais escorreu por inteiro. Acho que há uma contingência da fase que eu passei quando venho para BH junto a compreender o que significava, na pele, um fim de mês para meus pais. Nunca fui alienado que pra gente era difícil pra caralho, mas, sentir na pele são outros quinhentos.

Desde que me mudei de casa e moro absolutamente sozinho, banco tudo e afins, chegou ali a partir do dia 20, 25, incondicionalmente e progressivamente meu corpo entra em estado de alerta, ainda que eu possa até saber que não vai faltar dinheiro, o corpo tensiona e se mantém até a hora que o aluguel, as contas, o cartão de crédito é pago e é bizarro o quão instantâneo é essa descarga de tensão. Entretanto, enquanto tais pagamentos não chegam a ansiedade come solta, faz a festa. O pensamento catastrófico, nessa época, costuma tentar invadir mais aqui em casa. A decepção passa na rua e olha aqui dentro de casa também. Nunca ninguém entra, mas, dizer que não ronda, seria se iludir.

É um sentimento inteiramente específico, tão pós-moderno, tão ansiógeno, tão oscilante e tão de horário marcado que não dá pra definir com um aglomerado de palavras que conceituam sentimentos, o fim de mês é sofisticadamente específico em como atravessa nosso corpo.

Dá impressão que é uma guerra íntima dentro da guerra social na tristeza do capitalismo tardio. Talvez não seja impressão.

Acho que toda essa divagação sobre final do mês é toda uma tentativa de elaboração do tanto de camadas absurdas que existem num período de dias pras pessoas. Todo mês que se passa é uma renovação, é atravessar uma linha de chegada que, definitivamente, em algum momento a dúvida "será que dou conta mesmo?" passa pela cabeça. Claro que tudo isso difere-se para as pessoas e suas especificidades, mas, é muito absurdo que essa seja a base, o comum, o cotidiano.

Como eu disse: Eu nem sou mais a pessoa que deveria gastar tanta energia com esse tipo de preocupação, eu faço dinheiro o bastante pra ser caracterizado como classe média economicamente - simbolicamente e socialmente acho que não - mas, pra quem foi pobre, passo pra trás é se ferir de uma forma tão aguda que é difícil explicar.

Agora entendo o porquê que meus pais gastavam o dinheiro inteiro deles em comida e não abriam mão da fartura da geladeira. A casa podia estar caindo aos pedaços - e estava - ou então anos sem se dar algum tipo de presente, mas, enquanto a geladeira não transbordava, não tava bom.

Pra gente pobre todo começo de mês é nascer de novo.

Share nada em nenhum lugar em tempo nenhum.

_____________me siga nas redes: @matheusyfe em tudo. // arte da capa de tjo.

1 Comentário
nada em nenhum lugar em tempo nenhum.
nada em nenhum lugar em tempo nenhum.
sobre nada em nenhum lugar em tempo nenhum, e tudo de mim pro mundo e do mundo pra mim.
Ouvir em
App Substack
RSS Feed
Aparece no episódio
matheus morais inácio.